Maxfield Parrish
O Sermão sobre a Queda de Roma
Autor: Jérôme Ferrari
Tradução: Samuel Titan Jr.
Editora: 34
As civilizações cumprem um ciclo semelhante à vida humana: nascem, conhecem o apogeu e definham até a morte. Tal máxima vale tanto para o Império Romano, que desabou no ano de 410, como para a União Soviética, cujo poderio se extinguiu simbolicamente com as primeiras marretadas que derrubaram o muro de Berlim, em 1989. "Sempre me interessei por esses desastres silenciosos, em que a corrosão só se torna evidente quando o edifício inteiro finalmente rui", comenta o escritor francês Jérôme Ferrari, um dos principais destaques estrangeiros da próxima Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, que ocorre entre 3 e 7 de julho, na cidade fluminense.
Aos 45 anos, Ferrari tornou-se uma celebridade das letras no ano passado, quando seu livro O Sermão Sobre a Queda de Roma ganhou o Goncourt, o mais prestigioso prêmio francês. A obra chega agora ao Brasil sob a chancela da Editora 34, que inicia, assim, em alto estilo, sua Coleção Fábula - o próximo volume será uma nova tradução de Cândido, de Voltaire. E, em julho, será a vez de Carmen, de Prosper Mérimée.
Não foi uma tarefa fácil - com uma linguagem torturada (como observou o jornal francês Figaro), Jérôme Ferrari oferece uma reflexão sobre o declínio do mundo ocidental a partir da história de dois amigos de infância, Matthieu e Libero, que resolvem abandonar os estudos de filosofia em Paris para se lançar em uma aventura aparentemente fadada ao fracasso: assumir o controle do único bar de uma vila na Córsega. Na verdade, as confusões etílicas da dupla compõem algumas das diversas histórias do romance, que vão de Paris a Argel, da Indochina francesa às antigas colônias na África.
Em outro ponto da narrativa, o leitor acompanha a tortura mental de um idoso, Marcel Antonetti, que, logo no início da trama, é descoberto mirando com tristeza uma velha fotografia de família, pobre relíquia de uma França devastada pela 1ª Guerra Mundial. Sua memória só reteve momentos tenebrosos, sucessão de fracassos pessoais e profissionais.
"Escrevendo numa linguagem muito pessoal e trabalhada, que alterna frases longas e falas brevíssimas, Ferrari compõe uma narrativa circular e vertiginosa. O ápice vem com o sermão final, momento de bela prosa oratória que põe o romance sob o signo da sentença agostiniana: o mundo é como o homem - nasce, cresce e morre."
A referência não é gratuita. Ferrari não esconde a grande influência do Sermão 81, de Santo Agostinho (354-430), especialmente por utilizar a queda de Roma como forma de expressar sua desilusão com o enfraquecimento do Cristianismo como religião unificadora. "Foi a leitura do trecho desse sermão que me inspirou", disse Ferrari ao Estado, por telefone, desde Abu Dabi, capital dos Emirados Árabes, onde leciona filosofia. "Ele dizia que não deveríamos ficar surpresos com o desaparecimento de Roma, pois o mundo é como o homem, que nasce, cresce e morre. Isso não só me motivou como se transformou na epígrafe do meu livro."
Ele conta que o projeto estava engavetado fazia anos, com o título provisório de Os Mundos. "O que pretendi em Sermão era oferecer um resposta inovadora para a pergunta: 'O que é o mundo?'", explica. "Busquei criar várias camadas enquanto pensava no filósofo alemão Leibniz para quem, em cada mundo, há um número infinito de elementos. Ou seja, tanto pode ser Roma e seu império decadente como o bar de uma aldeia erma, cenário do meu romance. Realmente levo a sério as palavras de Santo Agostinho, pois a trama se constrói a partir do nascimento de um mundo representado por diversos personagens, que atingem um apogeu até chegar sua derrocada. Acredito existir uma coerência mecânica, um ciclo de lógica, que regem o funcionamento do romance."
Apesar de a filosofia ser o seu ganha-pão, Ferrari não a utiliza como ferramenta ao escrever ficção. "Não sou um filósofo de fato por conta da incapacidade de criar conceitos - não bastam opiniões racionais. Assim, a literatura é minha melhor forma de expressão", confessa. "Parece-me que não podemos conceber um bom romance em que os personagens são apenas a máscara de um conceito ou uma crença ideológica, moral etc. Por conta disso, adoro romances metafísicos, eu me inspiro em escritores como Dostoievski e Styron, que mapeiam com sensibilidade a alma humana. O romance tem, na minha opinião, uma vantagem sobre a filosofia ao refletir melhor a complexidade da realidade, sem se preocupar com as exigências da lógica."
Bom conhecedor de literatura, Ferrari desconhece, porém, o trabalho de qualquer autor brasileiro. "Minha cultura latino-americana se resume aos de língua espanhola, como García Márquez, Borges e Cortázar. E é irônico que minha primeira visita ao continente seja justamente no Brasil - será minha chance de redenção."