quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

A cidade

Carmelo Gentil Filho
Uma cidade não é medida
por becos e logradouros,
nem lembra contas e cálculos
que a gente parte e reparte.
-
A cidade é o que fica:
solidão, engenho e arte.
-
Uma cidade é um rosário,
voltando sempre ao começo.
Não é o filho querido,
que quando cresce evapora.
-
A cidade é o que se conta
no calcanhar da memória.

Luís Pimentel

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Hino de amor

Hans Zatzka
Andava um dia
Em pequenino
Nos arredores
De Nazaré,
Em companhia
De São José,
O bom Jesus,
O Deus Menino.

Eis senão quando
Vê num silvado
Andar piando
Arrepiado
E esvoaçando
Um rouxinol,
Que uma serpente
De olhar de luz
Resplandecente
Como a do Sol,
E penetrante
Como diamante,
Tinha atraído,
Tinha encantado.

Jesus, doído
Do desgraçado
Do passarinho,
Sai do caminho,
Corre apressado,
Quebra o encanto,
Foge a serpente,
E de repente
O pobrezinho,
Salvo e contente,
Rompe num canto
Tão requebrado,
Ou antes pranto
Tão soluçado,
Tão repassado
De gratidão,
De uma alegria,
Uma expansão,
Uma veemência,
Uma expressão,
Uma cadência,
Que comovia
O coração!

Jesus caminha
No seu passeio,
E a avezinha
Continuando
No seu gorjeio
Enquanto o via;
De vez em quando
Lá lhe passava
À dianteira
E mal pousava,
Não afroixava
Nem repetia,
Que redobrava
De melodia!

Assim foi indo
E foi seguindo.
De tal maneira,
Que noite e dia
Numa palmeira,
Que havia perto
Donde morava
Nosso Senhor
Em pequenino
(Era já certo)
Ela lá estava
A pobre ave
Cantando o hino
Terno e suave
Do seu amor
Ao Salvador!

João de Deus (1830-1896)

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Brasil de luto...

Jean Baptiste Jules Trayer
E quando um acidentado acorda,
perplexo, no outro mundo,
e indaga dos anjos que horas são,
muito mais perplexos ficam os anjos…

Mario Quintana (1906-1994)

Reflexão

Duy Huynh
Não nomear as coisas com seus nomes. As coisas têm bordas dentadas, vegetação luxuriante. Mas quem fala no quarto cheio de olhos. Quem denteia com uma boca de papel. Nomes que vêm, sombras com máscaras. Me cura do vazio - disse eu. (A luz se amava no meu escuro. Percebi que já não havia quando me peguei dizendo: sou eu.) Me cura - disse eu.
Alejandra Pizarnik (1936-1972)

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Chopp

Renoir
Na avenida Guararapes,
o Recife vai marchando.
O bairro de Santo Antonio,
tanto se foi transformando
que, agora, às cinco da tarde,
mais se assemelha a um festim,
nas mesas do Bar Savoy,
o refrão tem sido assim:
São trinta copos de chopp,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.
Ah, mas se a gente pudesse
fazer o que tem vontade:
espiar o banho de uma,
a outra amar pela metade
e daquela que é mais linda
quebrar a rija vaidade.
Mas como a gente não pode
fazer o que tem vontade,
o jeito é mudar a vida
num diabólico festim.
Por isso no Bar Savoy,
o refrão é sempre assim:
São trinta copos de chopp,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.

Carlos Pena Filho (1929-1960)

domingo, 27 de janeiro de 2013

Poeminha

Rebecca Rebouche
Quando saio de mim
por aí
encontro
o outro
eu, e os outros
eus,
including clouds.

Karina Rabinovitz

sábado, 26 de janeiro de 2013

Flor de asfalto

Carl Schweninger
Trazes nos olhos a melancolia
das longas perspectivas paralelas,
das avenidas outonais, daquelas
ruas cheias de folhas amarelas
sob um silêncio de tapeçaria...

Em tua voz nervosa tumultua
essa voz de folhagens desbotadas,
quando choram ao longo das calçadas,
simétricas, iguais e abandonadas,
as árvores tristíssimas da rua!

Flor da cidade, em teu perfume existe
Qualquer coisa que lembra folhas mortas,
sombras de pôr de sol, árvores tortas,
pela rua calada em que recortas
tua silhueta extravagante e triste...

Flor de volúpia, flor de mocidade,
teu vulto, penetrante como um cume,
passa e, passando, como que resume
no olhar, na voz, no gesto e no perfume,
a vida singular desta cidade.

Guilherme de Almeida (1860-1969)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Não-coisa

Sandra Bierman
O que o poeta quer dizer
no discurso não cabe
e se o diz é pra saber
o que ainda não sabe.

Uma fruta uma flor
um odor que relume...
Como dizer o sabor,
seu clarão seu perfume?

Como enfim traduzir
na lógica do ouvido
o que na coisa é coisa
e que não tem sentido?

A linguagem dispõe
de conceitos, de nomes
mas o gosto da fruta
só o sabes se a comes.

só o sabes no corpo
o sabor que assimilas
e que na boca é festa

de saliva e papilas
invadindo-te inteiro
tal do mar o marulho
e que a fala submerge
e reduz a um barulho,

um tumulto de vozes
de gozos, de espasmos,
vertiginoso e pleno
como são os orgasmos

No entanto, o poeta
desafia o impossível
e tenta no poema
dizer o indizível:

subverte a sintaxe
implode a fala, ousa
incutir na linguagem
densidade de coisa
sem permitir, porém,
que perca a transparência
já que a coisa é fechada
à humana consciência.

O que o poeta faz
mais do que mencioná-la
é torná-la a aparência
pura - e iluminá-la

Toda coisa tem peso:
uma noite em seu centro.
O poema é uma coisa
que não tem nada dentro,

a não ser o ressoar
de uma imprecisa voz
que não quer se apagar
- essa voz somos nós.

Ferreira Gullar

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Graciliano Ramos

Marc Chagall
“Comovo-me em excesso,
por natureza e por ofício.
Acho medonho alguém
viver sem paixões”.

Graciliano Ramos (1892-1953)

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Há pensamentos que são orações

“Há pensamentos que são orações.
Há momentos nos quais,
seja qual for a posição do corpo,
a alma está de joelhos”.

Victor Hugo (1802-1885)

Reflexão

“Quem sabe direito o que uma pessoa é?
Antes sendo: julgamento é sempre defeituoso,
porque o que a gente julga é o passado”.

João Guimarães Rosa

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Poema Sulfi


“Dance, meu coração!
Dance hoje com alegria.
As formas de amor enchem os dias e as noites de música,
e o mundo ouve a melodia
Loucas de alegria, a vida e a morte
dançando ao ritmo dessa música.
As montanhas, o mar e a terra dançam.
O mundo do homem dança em riso e lágrimas.
Por que usar as vestes do monge e viver
separado do mundo com arrogância solitária?
Veja! Meu coração dança no deleite de cem artes;
e o Criador muito se compraz”.

Kabir Das (1440-1518)
Poeta hindu

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

A Ceifeira Solitária

Paul Gauguin- Heuernte

Só ela no campo vi:
solitária de altas serras,
ceifa e canta para si.
Não digas nada, que a aterras!
Sozinha ceifa no mundo
E canta melancolia.
Escuta: o vale profundo
Transborda à de harmonia.

Nunca um rouxinol cantou
em sombras da Arábia ardente
ao que exausto repousou
mais grata canção dolente;
ou gorjeio tão extremado
se escutou na Primavera,
cortando o Oceano calado
entre ilhas de Além-Quimera.

Quem me dirá do que canta?
Será que o que ela deplora
é antigo, triste e distante,
como batalhas de outrora?
Ou coisas simples são
do quotidiano viver?
Essas dores de coração,
que já foram e hão de ser?

Seja o que for que cantara
é como infindo cantar,
que a vi cantando na seara,
no trabalho de ceifar.
Sem falar, quieto, eu escutava
e, quando o monte subia,
no coração transportava
o canto que não se ouvia.

William Wordsworth (1770-1850)

domingo, 20 de janeiro de 2013

Poema chicote

Jindra Noewi

Eis o tabuleiro do abismo
Com esfinge, quimeras e grifo.

O céu debruado em ódio
Mostra o peito de arlequim.

Eternidade madrasta,
Meu pensamento me queima
Terrível. Já estou com medo
De avançar para mim mesmo.

Nada existe sem amor.

Esposa que te negaste,
É tarde! em torno de mim
O mito rói a realidade
Cortinas negras abafam
Meu invicto coração.
Ó Deus como tardas a vir
Nas asas do teu enigma!

Nasci para não nascer.

Murilo Mendes (1901-1975)

sábado, 19 de janeiro de 2013

Fica o não dito por dito

Charles Edward Perugini

O poema
antes de escrito
não é em mim
mais que um aflito
silêncio
ante a página em branco

ou melhor
um rumor
branco
ou um grito
que estanco
já que
o poeta
que grita
erra
e como se sabe
bom poeta (ou cabrito)
não berra

o poema
antes de escrito
antes de ser
é a possibilidade
do que não foi dito
do que está
por dizer
e que
por não ter sido dito
não tem ser
não é
senão
possibilidade de dizer

mas
dizer o quê?
dizer
olor de fruta
cheiro de jasmim?

mas
como dizê-lo
se a fala não tem cheiro?

por isso é que
dizê-lo
é não dizê-lo
embora o diga de algum modo
pois não calo

por isso que
embora sem dizê-lo
falo:
falo do cheiro
da fruta
do cheiro
do cabelo
do andar
do galo
no quintal
e os digo
sem dizê-los
bem ou mal

se a fruta
não cheira
no poema
nem do galo
nele
o cantar se ouve
pode o leitor
ouvir
(e ouve)
outro galo cantar
noutro quintal
que houve

(e que
se eu não dissesse
não ouviria
já que o poeta diz
o que o leitor
- se delirasse -
diria)

mas é que
antes de dizê-lo
não se sabe
uma vez que o que é dito
não existia
e o que diz
pode ser que não diria

e
se dito não fosse
jamais se saberia

por isso
é correto dizer
que o poeta
não revela
o oculto:
inventa
cria
o que é dito
(o poema
que por um triz
não nasceria)

mas
porque o que ele disse
não existia
antes de dizê-lo
não o sabia

então ele disse
o que disse
sem saber o que dizia?
então ele o sabia sem sabê-lo?
então só soube ao dizê-lo?
ou porque se já o soubesse
não o diria?

é que só o que não se sabe é poesia

assim
o poeta inventa
o que dizer
e que só
ao dizê-lo
vai saber
o que
precisava dizer
ou poderia
pelo que o acaso dite
e a vida
provisoriamente
permite.

Ferreira Gullar

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Rota de colisão

Alessandro Sani
De quem é esta pele
que cobre a minha mão
como uma luva?
Que vento é este
que sopra sem soprar
encrespando a sensível superfície?
Por fora a alheia casca
e a distância entre as duas
que me atropela.
Pensei entrar na velhice
por inteiro
como um barco
ou um cavalo.
Mas me surpreendo
jovem velha e madura
ao mesmo tempo.
E ainda aprendo a viver
enquanto avanço
na rota em cujo fim
a vida
colide com a morte.

Marina Colasanti

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Poética do Eremita

Foto de Nancy Rose
No deserto,
estão secas,
as pedras,
que no mar se molhavam
A semelhança confunde
o eremita
Que solitário demais
passou o tempo
entregando-se à solitária memória

Aqui, a pedra seca
para o eremita,
não perdeu
A qualidade húmida
de poder
ter estado ao pé do mar.

Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007)

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Sintonia

Desejo de estar presente
na vibração deste agora
de inquietação e procura,
coragem e afirmação.
Bem dentro do coração
que supera o sofrimento

Estar no exato momento
em que o pensar se libera
de suas grades e muros.
Contagiar-se de espera.
Lavrar os dias futuros.

Helena Kolody (1912-2004).

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

E a margarida...

“Você me amava
disse
a margarida.

A margarida
é doce
amarga a vida”.

Paulo Leminski (1944-1989)

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Pense nisso:

Émile Munier
“A cultura contemporânea perdeu
o sentido daqueles grandes valores que,
na era antiga e medieval e também nos
primeiros séculos da era moderna, constituíam
pontos de referência essenciais, e em ampla medida
irrenunciáveis, no pensamento e na vida”.

Giovanni Reale (1931-2014)
Filósofo italiano

domingo, 13 de janeiro de 2013

A cantiga que cantavas

Franz von Defregger

A cantiga que cantavas
não tinha acompanhamento
nem de nenhum instrumento
nem de outra voz, nem de vento,
nem de água em murmúrio vão.

Subia pura na noite.
Subia serenamente
fresca, simples, inocente,
para os astros, para a lua,
no seio da solidão.

Afora o canto que entoavas,
tudo era recolhimento
no vasto e perdido mundo.
Tudo era êxtase profundo.
Ao teu canto claro e lento,
tudo era deslumbramento.
Não havia voz de vento,
nem água em murmúrio vão.

Teu canto, no vasto mundo,
não tinha acompanhamento.


Tasso da Silveira (1895-1968)
Em: Antologia de poemas para a infância.

sábado, 12 de janeiro de 2013

Memória falha

Guglielmo Zocchi
Foi tanta a espera
que a memória falha um pouco
geme um pouco
finge que esquece
e se mistura enevoada
feito hiato, sombra
lembrança inexata
de um gosto bom.

a saudade vem mais forte
na medida certa da proximidade.

Paula Cajaty

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Seriam garças?

Washington Maguetas
Seriam garças?
a despirem lentamente
suas vestes
suas demoras
suas mágoas?

seriam garças?
a rodearem esperas
vertigens e voos
a enrodilharem miragens
nesse manso tempo?

seriam garças?
estampadas levemente
em vontades nuas
escondidas
nessas tuas aragens
de mudo lamento

seriam garças?
essas brancas esgarçaduras
do vento
ou apenas sou eu
entremeada
que respiro nelas?

Paula Cajaty

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Uns Braços

Jean Antoine Watteau
(…) Não digo que ficou em paz com os meninos, porque o nosso Inácio não era propriamente menino. Tinha quinze anos feitos e bem feitos. Cabeça inculta, mas bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não acaba de saber nada. Tudo isso posto sobre um corpo não destituído de graça, ainda que mal vestido. Também a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus, constantemente. Usava mangas curtas em todos os vestidos de casa, meio palmo abaixo do ombro; dali em diante ficavam-lhe os braços à mostra. Na verdade, eram belos e cheios, em harmonia com a dona, que era antes grossa que fina, e não perdiam a cor nem a maciez por viverem ao ar; mas é justo explicar que ela os não trazia assim por faceira, senão porque já gastara todos os vestidos de mangas compridas.
Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina.
Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe permitia encará-los logo abertamente, parece até que a princípio afastava os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. (…).
Machado de Assis (1839-1908)
in: do conto Uns Braços.
Podemos perceber um certo tom de erotismo por parte do personagem que demonstra uma atração física pela sua patroa D. Severina, quando a mesma deixa os braços sem cobrir, despertando com isso o interesse em admirá-los de uma forma intencional. A figura da mulher já não era mais idealizada, e sim vista no plano material e físico.
Assim como este, existe uma infinidade de outros contos, todos baseados na temática voltada para a realidade social e para a questão da personalidade humana.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Estátua falsa

Antonio Paoletti
Só de ouro falso os meus olhos se douram;
Sou esfinge sem mistério no poente.
A tristeza das coisas que não foram
Na minha alma desceu veladamente.
Na minha dor quebram-se espadas de ânsia,
Gomos de luz em treva se misturam.
As sombras que eu dimano não perduram,
Como Ontem, para mim,
Hoje é distancia.
Já não estremeço em face do segredo;
Nada me aloira já, nada me aterra:
A vida corre sobre mim em guerra,
E nem sequer um arrepio de medo!
Sou estrela ébria que perdeu os céus,
Sereia louca que deixou o mar;
Sou templo prestes a ruir sem deus,
Estátua falsa ainda erguida ao ar...

Mário de Sá Carneiro (1890-1916)