Mostrando postagens com marcador Miguel Torga. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Miguel Torga. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

História

Hendrik van Bale
Cada época é definida pelo que apresenta de novo, de especificamente seu. Pode não ser um alto pensamento filosófico, uma grande reforma moral, uma arte requintada, uma ciência generosa. Mas há de ser a dádiva de qualquer uma dessas manifestações humanas, ou todas, numa concepção inteiramente inédita, original, inconcebível noutro tempo da história. Ora, quem olhar de boa-fé, sem cataratas e com o passado na memória, é obrigado a reconhecer que, se a nossa era tem um cunho, uma personalidade, uma cara própria, tal dom foi-lhe dado pelos Estados Unidos. Boa ou má, a arquitetura atual é americana. Americana pela concepção, e americana pela realização. Embora seja doloroso confessá-lo, a verdade é esta: quando mais tarde, os nossos tetranetos falarem de estilos, religiosos ou profanos, hão de exprimir-se assim: depois da Grécia e de Roma, a humanidade teve o românico, o gótico e o barroco e… os arranha-céus. O seu a seu dono. Na atualidade, tudo quanto se constrói fora da asa prática do cimento e do aço, como caráter, é uma babugem do já feito e refeito. Vivo, singular, próprio – as casas de incontáveis andares de Manhattan. Mas se passarmos da arquitetura para o cinema, a grande expressão artística do presente, quem é que se atreve a negar que essa expressão é tipicamente americana? Cinema russo, cinema alemão, cinema francês…e acaba-se sempre em Hollywood. Arte alicerçada na técnica, onde poderia ser a sua pátria natural senão no país que a levou ao esplendor conhecido? É certo que a maioria dos sábios, dos artistas, dos filósofos e de todos os que são de verdade os obreiros daquela grande nação, nasceram aqui, na Europa. Tal circunstância, porém, não muda a face das coisas. O fato de só nos Estados Unidos, e apenas lá, terem dado a medida do seu génio, integra-os na expressão coletiva americana. Que importa que Charlie Chaplin seja inglês com quantos glóbulos tem? A humanidade há de entendê-lo sempre ligado às rodas e às ruas de Nova York…”
E termina o diálogo com uma magnífica metáfora:

“Provado que Deus fez as abóboras e as melancias, provado está que fez também os melões. Agora o que podemos é não gostar das abóboras, das melancias e dos melões que crescem nas hortas doutros continentes…”
Miguel Torga (1907-1995)

domingo, 24 de junho de 2012

A um negrilho

Fasani
Na terra onde nasci há um só poeta
Os meus versos são folhas dos seus ramos.
Quando chego de longe e conversamos,
É ele que me revela o mundo visitado.
Desce a noite do céu, ergue-se a madrugada,
E a luz do sol aceso ou apagado
É nos seus olhos que se vê pousada.

Esse poeta és tu, mestre da inquietação
Serena!
Tu, imortal avena
Que harmonizas o vento e adormeces o imenso
Redil de estrelas ao luar maninho.
Tu, gigante a sonhar, bosque suspenso
Onde os pássaros e o tempo fazem ninho!

Miguel Torga (1907-1995)

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Guerra Civil

Dustin Nowlin - The War Within Our Hearts
É contra mim que luto
Não tenho outro inimigo.
O que penso
O que sinto
O que digo
E o que faço
É que pede castigo
E desespera a lança no meu braço

Absurda aliança
De criança
E de adulto.
O que sou é um insulto
Ao que não sou
E combato esse vulto
Que à traição me invadiu e me ocupou

Infeliz com loucura e sem loucura,
Peço à vida outra vida, outra aventura,
Outro incerto destino.
Não me dou por vencido
Nem convencido
E agrido em mim o homem e o menino.

Miguel Torga (1907-1995)

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Ícaro

Charles Paul Landon
O sol dos Sonhos derreteu-lhe as asas.
E caiu lá do céu onde voava
Ao rés-do-chão da vida.
A um mar sem ondas onde navegava
A paz rasteira nunca desmentida...

Mas ainda dorida
No seio sedativo da planura,
A alma já lhe pede impenitente,
A graça urgente
De uma nova aventura.

Miguel Torga (1907-1995)

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

  Confiança

Vincent van Gogh: O Vinhedo Vermelho

O que é bonito neste mundo, e anima,
É ver que na vindima
De cada sonho
Fica a cepa a sonhar outra aventura…
E que a doçura
Que se não prova
Se transfigura
Numa doçura
Muito mais pura
E muito mais nova…

Miguel Torga (1907-1995)

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Guerra Civil

Leyla Munteanu
É contra mim que luto
Não tenho outro inimigo.
O que penso
O que sinto
O que digo
E o que faço
É que pede castigo
E desespera a lança no meu braço

Absurda aliança
De criança
E de adulto.
O que sou é um insulto
Ao que não sou
E combato esse vulto
Que à traição me invadiu e me ocupou

Infeliz com loucura e sem loucura,
Peço à vida outra vida, outra aventura,
Outro incerto destino.
Não me dou por vencido
Nem convencido
E agrido em mim o homem e o menino.

Miguel Torga (1907-1995)

sábado, 30 de julho de 2011

Matei a lua e o luar difuso

Matei a lua e o luar difuso.
Quero os versos de ferro e de cimento.
E em vez de rimas, uso
As consonâncias que há no sofrimento.

Universal e aberto, o meu instinto acode
A todo o coração que se debate aflito.
E luta como sabe e como pode:
Dá beleza e sentido a cada grito.

Mas como as inscrições nas penedias
Têm maior duração,
Gasto as horas e os dias
A endurecer a forma da emoção.

Miguel Torga (1907-1995)