domingo, 29 de setembro de 2013

Pintura desconhecida de Ticiano descoberta no Uruguai

Pintura descoberta de Ticiano
Uma pintura da Ascensão de Cristo cujo autor se desconhecia foi agora atribuída, pelo historiador de arte austríaco Artur Rosenauer, a Ticiano, o célebre pintor veneziano do Renascimento. A obra pertencera a uma família aristocrática alemã e encontra-se atualmente numa coleção privada em Montevideu, no Uruguai.
Rosenauer, que dedica um artigo a esta descoberta no mais recente número da revista Burlington Magazine, sublinha que o aparecimento de um Ticiano desconhecido é algo “extremamente raro”. O pintor morreu em 1576, crê-se que já octogenário, e foi, sem contestação, o mais famoso artista veneziano do seu tempo.
Segundo Rosenauer, a pintura agora atribuída a Ticiano terá sido executada por volta de 1511, quando o pintor andaria nos seus vinte anos. Com 144 cm de altura por 116,5 cm de largura, mostra Cristo de pé, junto ao túmulo do qual acabara de se erguer, tendo como fundo um céu com nuvens, mas iluminado pelo sol da manhã.
A obra terá sido adquirida no século XIX pela família von Bülow e manteve-se nas mãos dos seus descendentes até à morte do político e diplomata Bernhard Heinrich von Bülow, chanceler do Império Germânico de 1900 a 1909, após ter ocupado as funções de ministro dos Negócios Estrangeiros. Segundo Rosenauer, a pintura esteve na posse de Bernard von Bülow até este morrer em Roma, em 1929.
A identidade dos proprietários subsequentes não foi divulgada, mas, segundo o jornal inglês The Guardian, tratar-se-ia de europeus que emigraram para a América do Sul antes da Segunda Guerra.
Rosenauer não arriscou um possível valor comercial para esta pintura, mas uma outra obra de Ticiano, Diana e Calisto, que o artista terá executado entre 1556 e 1559, foi comprada em conjunto, em 2012, pela National Gallery de Londres e pela sua congénere escocesa, que pagaram 45 milhões de libras esterlinas (ao câmbio atual, perto de 54 milhões de euros) ao seu proprietário, o duque de Sutherland, Francis Egerton, para impedir que o quadro saísse do Reino Unido.
Fonte: Estórias da História

sábado, 28 de setembro de 2013

A dívida secular de Campinas com o maestro genial

Foto do Maestro Carlos Gomes
Campinas promove uma série de atividades culturais do Mês Carlos Gomes. Há apresentações de música instrumental, números de canto e dança; exposições e palestras. A comunidade celebra a memória do filho ilustre da terra, que se foi deste mundo no dia 16 de setembro de 1896. Mas nem sempre foi assim. No final do século 19, a cidade ignorava a importância de um gênio que, muito doente, só encontrou acolhimento no Pará, onde morreu. E, para acirrar os debates sobre o tema, uma pesquisa aprofundada (que será publicada em livro) comprova que o maestro tinha, no país todo, o reconhecimento que a própria terra natal não lhe conferia.
Depoimentos raros, publicados em jornais de época, revelam para as novas gerações que a morte de Carlos Gomes conseguiu pacificar uma nação nervosa. Naquele tempo, explodiam movimentos revoltosos em todo o território nacional, comandados por fanáticos religiosos ou opositores do jovem governo republicano. Os textos foram localizados, ao longo de visitas pacientes a arquivos públicos e privados, por Jorge Alves de Lima, presidente do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Campinas (IHGGC).
O cidadão, de 76 anos, foi durante 35 anos procurador jurídico da Prefeitura. Depois da aposentadoria, ele começou a se dedicar a uma antiga paixão pessoal escrever sobre história e se tornou membro do Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA) e da Academia Campinense de Letras (ACL). Ele é autor de O Ovo da Serpente, obra que passa a ser publicada em série a partir de novembro, pela Editora Arte Escrita, sobre a epidemia de febre amarela que quase apagou a cidade do mapa no final do século 19.
Foi, durante pesquisas para a obra, que Lima de deparou com relatos impressionantes. Como o do jornalista Álvaro Muller, que em reportagem do Diário de Campinas afirmava que a cidade devia prestar uma homenagem ao maestro que, naquele dia, agonizava no leito de morte. Para o redator, a iniciativa, “ainda que tardia”, seria uma forma de compensar o que parecia ser um “silêncio criminoso” dos conterrâneos. Para o redator, só os desdobramentos da epidemia terrível podiam justificar, naquele momento; “a ingratidão revoltante” da cidade.
E a pesquisa de Lima foi além. Documento encontrado no Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp, reproduz o discurso de Júlio de Mesquita, fundador do jornal O Estado de São Paulo, que foi orador da solenidade póstuma em homenagem ao maestro, organizada no Teatro São Carlos no dia 26 de outubro de 1896 (um mês depois da morte). Mesquita afirmou, na ocasião, que o país estava diante do sério risco de se dividir em diversas republiquetas, por conta de movimentos separatistas. Mas que o falecimento do maestro promoveu uma verdadeira “explosão de sentimento patriótico”, que fez povo ignorar diferenças políticas e crises pontuais que alimentavam revoltas. “A arte é a afirmação de união de um grande povo”, disse o jornalista, no encerramento do discurso.
As revoltas, no caso, se referem às articulações patrocinadas por lideranças que sonhavam com o reestabelecimento do regime monárquico. Os atentados contra políticos republicanos, por exemplo, aconteciam ao mesmo tempo em que explodiam focos de insatisfação. “Aquela era uma época instável. Grupos fanáticos apareciam no sertão, militares articulavam revoluções dentro dos quarteis”, afirma o estudioso. “O doloroso martírio do maestro, diagnosticado com câncer na língua por médicos europeus, conseguiu unificar, pela primeira vez, os sentimentos do povo brasileiro”.
O teor detalhado dos textos encontrados foi exposto, durante ultimo encontro periódico dos membros do IHGGC, na sede do Rotary Club. “Acho que precisamos reparar um erro do passado. As novas gerações precisam saber que Campinas tem uma dívida moral, secular, com o maestro.”, diz.

Fonte:
Jornal Correio Popular: ( Baú de Histórias )

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Filosofia

Paul Gauguin
Uma boa palavra para definir a Filosofia é “diálogo”. Filosofar é, antes de tudo, dialogar, pois pensamentos interessantes não se constroem a partir de uma mente só, já que, como seres humanos, somos limitados no espaço e no tempo. Todo homem só é capaz de construir teorias que contemplem sua própria visão de mundo. No entanto, mesmo esta não é genuinamente sua pois, em todos os casos, se forma por intermédio de muitas pessoas. Por vezes, ideias geniais, brilhantes, são atribuídas exclusivamente a seu autor, mas todos se esquecem que elas o são justamente por resistirem, quase intactas, ao escrutínio do livre questionamento e do inescrupuloso tempo.
É evidente que grandes pensamentos não “brotam do nada”: são elaborados ao longo de uma vida, ou de várias, e através de muitos remendos e reformulações. E o que é a elaboração de um pensamento senão sua construção verbal, de forma que possa ser transmitido a outros, seja através de textos escritos ou oralmente? Se pensarmos bem, para qualquer pessoa, o momento de expor suas ideias ao mundo é o resultado de um grande processo de elaboração mental, para o qual já contribuíram inúmeras outras pessoas.
Com isso, pode-se afirmar que, apesar do que dizem as aparências, Filosofia nunca se faz sozinho. A ideia pode ser sua, você pode tê-la escrito inteiramente, mas jamais ela terá surgido por mérito única e exclusivamente seu. Seus pais, amigos, vizinhos, colegas e até completos desconhecidos; a mídia, o governo, a comunidade, a igreja e outras instituições; outros povos e culturas; enfim, todas as pessoas e ideias que fizeram parte da sua vida, direta ou indiretamente, tiveram sua parcela de contribuição para que seu pensamento saísse exatamente como saiu.
Bom, se por um lado não há pensamento de autoria exclusiva de uma única pessoa, também não há pensamento válido sem a interação com o mundo, sem viver no mundo. Filosofia é, pois, fruto da contemplação da realidade humana. Qualquer pensamento que a desconsidere jamais poderá ser considerado filosófico. Será poesia, mito, ou apenas pura fantasia, isso senão for visto como bobagem ou loucura e cair no ostracismo.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Meu namoro com Clarice Lispector

Foto de Clarice Lispector
A paixão por esta mulher — meio mito, meio esfinge, meio nuvem — começou muito cedo. Por volta dos meus 18 anos. Hiperativa, mocinha-criança-projeto de gente, eu perambulava pelas interrogações dos dias sempre com a cabeça acesa.
O coração, inevitavelmente doce. De uma doçura esparramada pelas surpresas da rotina, tomando conta de tudo, sempre. Mais curiosa e farejadora que os felinos, eu deslizava pela vida, entre atenta-e-desligada, num melódico movimento.
Garota faceira, travessa, intrigante. Achava que as calçadas das ruas eram tapetes. Ritos urbanos, ramificados em braços afáveis, estendidos devagar nas curvas do Rio de Janeiro. Para mim, o único objetivo desta cordial geografia era o de me receber, estava certa disso, nas minhas andanças constantes por bairros cariocas.
Vez por outra me flagrava cortejada, nos espelhos dos olhos pedintes, quase licorosos, dos transeuntes. Hormônios, seduções e segredinhos de quem também descobre, aos poucos, as ondulações internas nas montanhas russas do corpo, habitante de um parque de diversões chamado vida.
Saía, bebia, estudava, fazia terapia, lia muito, me divertia, dançava sempre. Amava me enfeitar de palavras, metáforas coloridas, fantasias saídas das estantes, para decorar, com exclusividade, meu colo adolescente.
Desde pequena, ainda portando lancheira nos recreios do colégio, comecei a colecionar passeios literários. Viagens exclusivas, paisagens febris, catalogadas uma a uma no armário branco do meu quarto — destinado a acomodar sonhos, ainda vindouros.
Foi quando conheci Clarice Lispector. Analógica, tangenciável. Rosto denunciando enigmas. Hieróglifos da alma. Olhos rondando a noite, de formato quase oriental. Pele alva. Quase transparente. Boca desenhada para murmurar histórias e ficções, ouvidas apenas pela escuta atenta de veias e artérias. Eu andava sempre com um livro dela na bolsa. “A Paixão Segundo G.H.”
Conversava com Pedro, na ocasião, seu filho mais velho, na clínica aonde ambos fazíamos terapia, quando inesperadamente Clarice surgiu — transportada por um silêncio régio e chuva torrencial. Noite sem estrelas, olhar esgazeado, cabelos úmidos, ela entrou na sala trajando uma capa de chuva cinza e um imponente guarda-chuva. Imaginando tratar-se de miragem, balbuciei trêmula. “Clarice… eu… te adoro.”
Clarice me observou sem pressa. A seguir passou delicadamente as costas da mão por meu rosto adolescente. Disse, então: “Lindaaa”. Eu sorri desajeitada, incrédula, mas consegui revelar: “Clarice, tenho um livro seu, que é minha leitura de cabeceira, aqui comigo. Você escreve algo pra mim?”.
“Qual é seu nome”, indagou? Eu respondi, ela me estendeu a mão novamente, esperando que lhe entregasse a obra. Então se acomodou num canto do sofá defronte ao que me encontrava, conversando com seu filho. Instantes depois me devolveu o livro, exibindo um sorriso discreto, acrescido da dedicatória. “Para a Graça, linda, inteligente e tão sensível, desejo toda a felicidade que merece. Sua Clarice”.
Houve mais três encontros com Clarice, depois desse dia. Na segunda vez, intermediada por seu filho Pedro, fui à sua casa. Vestida de verde musgo, roupa recém-adquirida para tão importante ocasião, combinando com meus olhos de mel e azeitona e cabelos quase louros. Levei um presente. Um long play, contendo músicas de Antonio Vivaldi, executadas pelo sexteto de cordas italiano I Musici. A faixa que mais me encantava era um concerto para bandolim, cordas e contínuo em sol maior.
Ainda não tinha completado 19 anos, quando a revi. Escrevi então no verso da capa do disco, com a respiração entrecortada: “Para a esfinge que divinizei, meu sonho, meu labirinto, meu acalanto. Tão rica e tão rara como a mais fina seda do Oriente”. Clarice olhou para mim, acendeu um cigarro, perguntou se eu tomava um café. Aceitei. Conversamos um pouco. Logo atrás do sofá, na sala de estar, havia uma máquina de escrever preta, rodeada de papéis sobre uma pequena mesa. Na ocasião, Clarice morava com sua secretária e assistente, Olga Borelli, que a auxiliava na digitação dos textos — pois a mão direita de Clarice apresentava, anos depois de grave incêndio no quarto de dormir, ainda as sequelas do acidente.
Olga naquele momento não estava. Foi quando, quase atropelando as palavras, confessei meu encantamento por outro livro de sua autoria que acabara de ler. “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres” — cuja história, belíssima, contava as nuances do amor de Ulisses e Lóri (Loreley). Em seguida, entreguei a ela um retrato meu, de que gostava especialmente. Um pouco depois nos despedimos.
Alguns anos depois, novo milagre acontece. Meados da década de 1970. Nós reencontramos inadvertidamente no corredor contíguo à redação da revista “Fatos e Fotos”, onde eu trabalhava como repórter. Clarice havia sido convidada pelo editor Justino Martins para escrever como cronista, no lugar de Nelson Rodrigues, ex-colaborador da publicação. Clarice me olhou nesta tarde, como se tentasse desvendar alguns dos meus abismos. Fiquei ruborizada, com o escrutínio. Ela sorriu e disse. “Lembro-me de você, menina. Posso lhe pedir para datilografar minha crônica?”
Balancei a cabeça de imediato, afirmativamente. Sentei, com ela ao meu lado. Em certo momento, Clarice afirmou estar com sede. Pediu, olhando em volta, se era possível trazerem um refrigerante para ela e outro para mim. Ao chegar o refrigerante, assim que sorvi o primeiro gole, Clarice me perguntou baixinho: “Quero beber do seu copo e descobrir seus segredos. Posso?”. “Em seguida, dirigiu-se a uma fotógrafa, Isabel, que trabalhava também na revista e solicitou: “Quero que tire uma foto minha para eu dar a Graça”.
Clarice , como já se sabia , era esquiva, não gostava de se expor, nem de conceder entrevistas. A foto foi feita. Mas Isabel nunca me entregou, arrumando sempre desculpas. Quando terminei de datilografar sua crônica, Clarice fez uma carícia em meu queixo. Antes de se despedir, comentou: “Você tem um rostinho de camafeu…”. Um ano depois, já trabalhando com o novo editor, Artur da Távola (Paulo Alberto Monteiro de Barros) revi Clarice pela última vez, em 9 de dezembro de 1977, um dia antes de seu aniversário. Paulo Alberto havia me convocado, com outros repórteres, para cobrir seu enterro e redigir uma matéria sobre a sua morte.
Não sei como consegui, quis desistir da tarefa. Entretanto, Paulo me advertiu, passando o braço afetuosamente sobre meus ombros: “Você é uma profissional, Graça, sei que pode cumprir seu papel”. Não entendo como, enfrentei o trágico evento, meio ligada no automático. A dor. As lacerações internas. As despedidas definitivas de Clarice Lispector. Porém nem tudo se foi. Restaram várias sementes deste cúmplice namoro. As lembranças de Clarice, mais férteis que nunca, permanecem vivas. Frequentando minhas memórias à vontade. E fazem isso, sem ao menos me pedir licença.

Fonte:
Revista Bula: ( Meu namoro com Clarice Lispector)

sábado, 21 de setembro de 2013

O Renascedor

Ernesto "Che" Guevara
Por que será que o Che
tem esse perigoso costume
de seguir sempre
renascendo?
Quanto mais o insultam,
o manipulam
o tradicionam, mais renasce.
Ele é o mais renascedor de todos!
Não será porque o Che
dizia o que pensava,
e fazia o que dizia?
Não será por isso, que segue
sendo tão extraordinário,
num mundo em que
as palavras e os fatos
raramente se encontram?
E quando se encontram,
raramente se saúdam,
porque não se
reconhecem?

Eduardo Galeano

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

O prazer de viver

Caverna de Lascaux
Quem primeiro decidiu comer um caracol?
Quem descobriu a trufa e a carne no siri?
Quem na lufa-lufa abriu uma ostra,
Encontrou uma pérola à mostra?
Que antecessor nosso, faminto, esquálido,
Descobriu quais cogumelos comer?
Teria morrido ou só desfalecido?
Quantos de nossos avós: nossa linhagem,
Humanos de diferentes origens,
Se envenenaram? Com desespero ou coragem?
À cata da janta, para manter, fortalecer
Seus corpos minguados, doentes, arados.
Quem sobreviveu, como aprendeu?
Caracóis são venenosos: têm que regurgitar
E evacuar antes que possamos comê-los.
Um décimo dos caranguejos são comestíveis.
Quem achou estes crustáceos irresistíveis,
Saboreou-os sem medo?
São todas iguarias refinadas. Caras. Sofisticadas.
Não são encontradas em qualquer caserna ou taberna.
Graças ao sacrifício do homem das cavernas?

Verdadeira iguaria é o bisão,
Principal figura das pinturas nas grutas.
Verdadeira iguaria é o mamão,
A maçã, o figo, a uva, qualquer das frutas.
Não aparecem todas no Jardim do Éden?
Elas vêm no tamanho certo de consumo,
Em embalagens de fácil manuseio,
As frutas foram os primeiros insumos,
Produtos com design perfeito.
Só a maçã pegou grande má fama,
Já pela manhã, complicou toda trama,
Expulsando o primeiro casal do Paraíso
Depois de lhes ter dado o primeiro sorriso.
E levou-os a ter que plantar para comer…
Mas trouxe com ela o prazer de viver!

Ladyce West

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Metafísica das rosas

Para a rosa, o jardineiro é imortal,
pois em se tratando de memória de rosa
jamais se viu morrer um jardineiro.

Bernard de Fontenelle (1657-1757)
Sir Lawrence Alma-Tadema
Entretanto, as Rosas estavam tristes, porque a contemplação das coisas era muda e os olhos dos pássaros e das borboletas não se ocupavam bastantemente das Rosas. E o Jardineiro, vendo-as tristes, perguntou-lhes:
— Que tendes vós, que inclinais as pétalas para o chão? Dei-vos a chácara e o jardim; criei o sol e os ventos frescos; derramo sobre vós o orvalho e a chuva; criei todas as plantas para que vos amem e vos contemplem. A minha mão detém no meio do ar os grandes pássaros para que vos não esmaguem ou devorem. Sois as princesas da terra. Por que inclinais as pétalas para o chão?
Então as Rosas murmuraram que estavam tristes porque a contemplação das coisas era muda, e elas queriam quem cantasse os seus grandes méritos e as servisse.
O Jardineiro sacudiu a cabeça com um gesto terrível; o jardim e a chácara estremeceram até aos fundamentos. E assim falou ele, encostado ao bastão que trazia:
— Dei-vos tudo e não estais satisfeitas? Criei tudo para vós e pedis mais? Pedis a contemplação de outros olhos; ides tê-la. Vou criar um ente à minha imagem que vos servirá, contemplará e viverá milhares e milhares de sóis para que vos sirva e ame.
E, dizendo isto, tomou de um velho tronco de palmeira e de um facão. No alto do tronco abriu duas fendas iguais aos seus olhos divinos, mais abaixo outra igual à boca; recortou as orelhas, alisou o nariz, abriu-lhe os braços, as pernas, as espáduas. E, tendo feito o vulto, soprou-lhe em cima e ficou um homem. E então lançou mão de um tronco de laranjeira, rasgou os olhos e a boca, contornou os braços e as pernas e soprou-lhe também em cima, e ficou uma mulher.
E como o homem e a mulher adorassem o Jardineiro, ele disse-lhes:
— Criei-vos para o único fim de amardes e servirdes as Rosas, sob pena de morte e abominação, porque eu sou o Jardineiro e elas são as senhoras da terra, donas de tudo o que existe: o sol e a chuva, o dia e a noite, o orvalho e os ventos, os besouros, os colibris, as andorinhas, as plantas todas, grandes e pequenas, e as flores, e as sementes das flores, as formigas, as borboletas, as cigarras os filhos das cigarras.
O homem e a mulher tiveram filhos e os filhos outros filhos, e disseram eles entre si:
— O Jardineiro criou-nos para amar e servir as Rosas; façamos festas e danças para que as Rosas vivam alegres.
Então vieram à chácara e ao jardim, e bailaram e riram, e giraram em volta das Rosas, cortejando-as e sorrindo para elas. Vieram também outros e cantaram em verso os merecimentos das Rosas. E quando queriam falar da beleza de alguma filha das mulheres faziam comparação com as Rosas, porque as Rosas são as maiores belezas do universo, elas são as senhoras de tudo o que vive e respira.
Mas, como as Rosas parecessem enfaradas da glória que tinham no jardim, disseram os filhos dos homens às filhas das mulheres: Façamos outras grandes festas que as alegrem. Ouvindo isto, o Jardineiro disse-lhes: — Não; colhei-as primeiro, levai-as depois a um lugar de delícias que vos indicarei.
Vieram então os filhos dos homens e as filhas das mulheres e colheram as Rosas, não só as que estavam abertas como algumas ainda não desabrochadas; e depois as puseram no peito, na cabeça ou em grandes molhos, tudo conforme ordenara o Jardineiro. E levando-as para fora do jardim, foram com elas a um lugar de delícias, misterioso e remoto, onde todos os filhos dos homens e todas as filhas das mulheres as adoram prostrados no chão. E depois que o Jardineiro manda embora o sol, pega das Rosas cortadas pelos homens e pelas mulheres, e uma por uma prega-as no toldo azul que cobre a chácara e o jardim, onde elas ficam cintilantes durante a noite. E é assim que não faltam luzes que clareiem a noite quando o sol vai descansar por trás das grandes árvores do ocaso.
Elas brilham, elas cheiram, elas dão as cores mais lindas da terra. Sem elas nada haveria na terra, nem o sol, nem o jardim, nem a chácara, nem os ventos, nem as chuvas, nem os homens, nem as mulheres, nada mais do que o Jardineiro, que as tirou do seu cérebro, porque elas são os pensamentos do Jardineiro, desabrochadas no ar e postas na terra, criada para elas e para glória delas. Grande é o Jardineiro! Grande e eterno é o pai sublime das rosas sublimes.
Machado de Assis (1839-1908)

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Cabelos de Rapunzel

Cabelos de Rapunzel transformaram
sete irmãs em celebridades no século XIX.
As irmãs Sutherland e o pai
Cabelo de Rapunzel não é coisa apenas de conto de fada. Pelo menos não no fim do século XIX. Uma família composta por sete irmãs, conhecidas como Sutherland Sisters, fizeram fama nos Estados Unidos com fios de até 1.1 metros.
Segundo o jornal "Daily Mail", que entrou em contato com o biógrafo da família, Brandon Stickney, elas ganharam cerca de US$ 3 milhões (R$ 7 milhões, valor altíssimo para a época) com performances pelo país e uma linha de tônico capilar que prometia crescimento do cabelo.
Filhas de um pastor do estado de Nova York, as meninas chamavam a atenção na igreja por seus longos cabelos, o que fez o pai, conhecido como Reverendo Sutherland, colocar no mercado o produto feito pela mãe das meninas e que era considerado o responsável pela força dos fios.
Composto por água, rum, sal, magnésio e ácido clorídrico, a solução era vendida em garrafas de vidro por até US$ 1,50, preço bastante salgado para os trabalhadores daqueles dias.
O visual inusitado deu a Sarah, Victoria, Isabella, Grace, Naomi, Mary e Dora o status de "celebridades" e figurinhas fáceis em publicações como "Cosmopolitan", "The New Yorker", "The New York Times" and "Time".
Apesar da fortuna e da fama, as sete morreram sem muitas posses. Hoje são vendidas no site eBay algumas relíquias dos tempos das irmãs Rapunzel, como uma garrafa vazia do tônico (US$ 249.99) e uma publicidade datada de 1903 (US$ 9.99).

Fonte:
Jornal O Globo: ( Cabelos de Rapunzel )

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Os Comedores de Batatas

Vincent Van Gohg - Comedores de batatas
A obra Os Comedores de Batatas, de Vincent Van Gogh, pertence à primeira fase da pintura do artista, desenvolvida na Holanda, sob influência do realismo do pintor Jean-François Millet. O quadro é de 1885 e encontra-se no Museu Van Gogh em Amesterdã. Nesta fase, Van Gogh desenhou e pintou muitas paisagens holandesas, cenas de aldeia. Em Nuenen, pequena cidade holandesa onde morava a sua família, realizou cerca de 250 desenhos, principalmente sobre a vida de camponeses e tecelões. Os Comedores de Batatas resumem esse período. Assim como os pintores realistas, ele falou sobre a miséria e retratou o desespero das pessoas humildes. Ele dizia que os camponeses deviam ser pintados com as suas características rudes, sem embelezamento, ponto em que criticou e superou a sua referência primeira, Millet.
Van Gogh salientou os traços grosseiros das mãos e das faces dos trabalhadores da terra. Em busca de intensidade dramática, explorou a potencialidade expressiva dos tons escuros. O quadro mostra cinco pessoas sentadas à volta de uma mesa tosca de madeira. A mulher mais nova tem uma travessa de batatas quentes a fumegar e, com uma expressão interrogativa, está a servir as doses. A mulher mais velha, à sua frente, deita nas canecas café de cevada e malte. O velho camponês bebe. Uma família camponesa está reunida para esta frugal refeição. Um candeeiro a petróleo irradia uma luz fraca, mostrando a grande pobreza; ao irradiar a sua luz trémula sobre todos de forma igual, estabelece a unidade na aparência destas figuras preocupadas.
Na carta ao seu irmão Théo, quando se refere a este trabalho, diz: "Apliquei-me conscientemente em dar a ideia de que estas pessoas que, sob o candeeiro, comem as suas batatas com as mãos, que levam ao prato, também lavraram a terra, e o meu quadro exalta portanto o trabalho manual e o alimento que eles próprios ganharam tão honestamente”. Está aqui demonstrada a consciência do conteúdo social tratado e a preocupação do artista em ser fiel à simplicidade das pessoas retratadas, não mostrando apenas a pouca comida, mas também a escassez de recursos, tanto na casa como nas roupas simples.
Vincent Van Gogh - Cabana com campesino
Nesta cabana residiam duas famílias, uma das quais os De Groots, representados na obra "Os Comedores de Batatas".

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

O Beija-flor

Era uma moça franzina,
Bela visão matutina
Daquelas que é raro ver,
Corpo esbelto, colo erguido,
Molhando o branco vestido
No orvalho do amanhecer.

Vede-a lá: tímida, esquiva...
Que boca! é a flor mais viva,
Que agora está no jardim;
Mordendo a polpa dos lábios
Como quem suga o ressábio
Dos beijos de um querubim!

Nem viu que as auras gemeram,
E os ramos estremeceram
Quando um pouco ali se ergueu...
Nos alvos dentes, viçosa,
Parte o talo de uma rosa,
Que docemente colheu.

E a fresca rosa orvalhada,
Que contrasta descorada,
Do seu rosto a nívea tez,
Beijando as mãozinhas suas,
Parece que diz: nós duas!...
E a brisa emenda: nós três! ...

Vai nesse andar descuidoso,
Quando um beija-flor teimoso
Brincar entre os galhos vem,
Sente o aroma da donzela,
Peneira na face dela,
E quer-lhe os lábios também
Treme a virgem de surpresa,

Leva do braço em defesa,
Vai com o braço a flor da mão;
Nas asas d’ave mimosa
Quebra-se a flor melindrosa,
Que rola esparsa no chão.
Não sei o que a virgem fala,
Que abre o peito e mais trescala
Do trescalar de uma flor:

Voa em cima o passarinho...
Vai já tocando o biquinho
Nos beiços de rubra cor.
A moça, que se envergonha
De correr, meio risonha
Procura se desviar;
Neste empenho os seios ambos
Deixa ver; inconhos jambos
De algum celeste pomar! ...

Forte luta, luta incrível
Por um beijo! É impossível
Dizer tudo o que se deu.
Tanta coisa, que se esquece
Na vida! Mas me parece
Que o passarinho venceu! ...

Conheço a moça franzina
Que a fronte cândida inclina
Ao sopro de casto amor:
Seu rosto fica mais lindo,
Quando ela conta sorrindo
A história do beija-flor.

Tobias Barreto (1839-1889)

domingo, 8 de setembro de 2013

"O Nascimento da Clínica"

O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) é amplamente conhecido pelas suas críticas às instituições sociais. Suas mais famosas obras enfocam especialmente à área da saúde. Filho de um médico, ele estava interessado na epistemologia da Medicina e 1963 publica, O Nascimento da Clínica - uma arqueologia do saber médico:
“Trata-se, no entanto, de um destes períodos que delineiam um inapagável limiar cronológico: o momento em que o mal, o contra natural, a morte, todo o fundo negro da doença em suma, vem à luz.[...] O que era fundamentalmente invisível subitamente se oferece ao brilho do olhar, num movimento de revelação tão simples, tão imediato que parece ser a consequência natural de uma experiência mais altamente desenvolvida. É como se, pela primeira vez em milhares de anos, os médicos, livres por fim de teorias e quimeras, concordassem em se aproximar do objeto de sua experiência com a pureza de um olhar sem preconceitos”.
Michael Foucault - O Nascimento da Clínica
A obra trata do domínio da medicina e do modo como se estruturou em alguns anos o conhecimento singular do indivíduo doente. Foucault escreveu “um livro sobre o espaço, sobre a linguagem, sobre a morte, sobre o ato de ver, sobre o olhar”. O Nascimento da Clínica analisa um período crucial da história da medicina: o fim do século XVIII e o início do XIX. O período histórico mencionado é caracterizado por grandes mudanças, em particular a Revolução Francesa. Ocorreu então uma reorganização da maneira de olhar o doente e, em decorrência do discurso médico: “uma nova aliança foi forjada entre palavras e coisas, permitindo ver e dizer”.
Até então, os médicos perguntavam ao doente o que estava errado com ele; agora, passam a perguntar onde dói. O diagnóstico é feito com base em um sistema classificatório de doenças; como a botânica, a medicina agora vai distribuir as entidades nosológicas em grupos. A doença tem sua sede em um órgão, em tem seu lugar em uma classe. A intervenção médica passa a ter normas. Antes, quando o doente recuperava seu vigor, sua disposição, estava curado. Agora, padrões de normalidade, numericamente expressos, definirão o objetivo do tratamento.
O hospital que, antes do século XVIII era basicamente uma instituição de caridade a cargo de religiosos, agora torna-se um instrumento de medicalização coletiva e leiga. Médicos famosos, que antes não apareciam nos hospitais, agora montam ali seus serviços. Começam a surgir os sistemas de intervenção médica, com registro de dados e sistemas estatísticos.
A medicina atua nas necessidades mais concretas do ser humano. Quando a saúde substitui a salvação da alma, conclui Foucault, o poder dos doutores cresce exponencialmente.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Antigamente dormia-se duas vezes por noite

Isabel Guerra

Dormir três horas, descansar três e
depois dormir outras seis era a norma antes do século XIX.

Dormir oito horas é a norma e o "correto" todos nós sabemos. Por mais adquirido que isso pareça, não era, de todo o habitual antes do século XIX. É isso que nos revela o professor de história da Virgina Tech, Roger Erkich, cuja pesquisa o fez chegar à conclusão que antes se dormia duas vezes por noite.
Em vez das oito horas num só bloco, os nossos antepassados dormiam em duas fases num perído mais longo, geralmente de 12 horas, que se dividia em três horas iniciais de sono, três de descanso e seis a dormir até de manhã.
As referências estão espalhadas ao longo da literatura e documentos da época e para Roger Erkich, o mais surpreendente é perceber que "esse comportamento era o mais habitual e disseminado por todas as classes", de acordo com o "Slumber Wise".
O período entre os 'dois sonos' era utilizado para as mais variadas atividades - ler, escrever, brincadeiras, entre outras -, sem sair da cama, e era visto com grande reverência por algumas das mentes mais famosas da época, como o poeta inglês Chaucer, por exemplo.
De acordo com Roger Erkich, a prática terá desaparecido com o advento da iluminação elétrica, primeiro nas ruas e, mais tarde, nas casas, bem como o aparecimento dos primeiros cafés noturnos. Novidades que serviram para que a noite deixasse de ser vista como altura perfeita para crimes, e passasse a ser olhada como altura de socialização.
Surpreendentemente, alguns dados científicos apontam para a tendência natural de dormir duas vezes por noite. De acordo com Russell Foster, especialista em neurociência da universidade de Oxford, a ocorrência comum de acordar durante a noite expressa a 'vontade' do nosso corpo em experimentar o padrão de dois períodos no escuro.
Já um estudo sobre os efeitos da luz nos padrões de sono realizado nos anos 90 por Thomas Wehr, apresentou resultados que indicam que passado um período de habituação sem luz elétríca, o corpo acabava naturalmente por assumir os "dois sonos por noite".
Ainda assim, não é cientificamente seguro que este padrão seja melhor para a nossa saúde do que as oito horas a que agora estamos habituados, uma vez que parece estar intimamente relacionado com a maior falta de luz que existia antes da propagação das eletricidade.

Fonte:
Jornal Expresso: ( Mudanças nos hábitos de dormir )

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Cidade dos estios

Henri Rousseau
Cidade acidental
dos estios. Senhoras
sobre luz, em azul.

Sedas, sedas extremas
insinuam, evitam
os ângulos fugitivos.

Desliza pelo seu carril
a reta. Corre, corre,
corre para a sua conclusão.

Ai! a cidade está
Louca de geometria,
Ó muito elementar!

Agosto é sábio
Com toda a simplicidade. Vértice,
Fatalidade sutil.

Por uma rede de caminhos,
De claríssimas tardes,
Seguem as delícias exatas.

E aos raios de sol
Evidentes, aconchega-se
A cidade essencial.

Jorge Guillén (1893-1984)
Tradução: Luís Costa

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Vem Primavera

Gustav Klimt

Vem Primavera.
O jogo dos sexos renova-se
Os amantes encontram seus pares.
Já a mão subtil e conquistadora do amado
Faz arrepiar o peito da rapariga.
Ela tenta-o com o olhar furtivo.

A uma nova luz
A paisagem revela-se aos amantes na Primavera.
A grande altura avistam-se os primeiros
Bandos de pássaros.
O ar já aqueceu.
Os dias são mais longos e os
Prados iluminam-se até tarde.

Desmedida é a exuberância de árvores e ervas
Na Primavera.
Perpetuamente fecundo
É o bosque, são os prados, os campos.
E a terra dá à luz o novo
Sem cuidado.

Bertolt Brecht (1898-1956)