segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

E o caminho?

Vincent Van Gogh - The Church in Auvers-sur-Oise
Atrás de nós ficava longe o amanhecer
e adiante a tarde já se havia ido,
a noite era uma montanha com estrelas.

Assim que havíamos alcançado o outro lado
quando às nossas costas
o vento gritou de medo
e o caminho desapareceu.

Humberto Ak'abal
(poeta da Guatemala)

domingo, 29 de janeiro de 2012

Literatura

“A ideia de trabalho como castigo precisa ser substituída pelo conceito de realizar uma obra. Enxergar um significado maior na vida aproxima o tema da espiritualidade do mundo do trabalho”.
Mario Sergio Cortella
O autor é, sem dúvida, um dos maiores pensadores brasileiros da atualidade, o filósofo e professor Mario Sergio Cortella. E o livro "Qual é a tua obra?" já traz um subtítulo que nos seduz para a leitura - "inquietações propositivas sobre gestão, liderança e ética". Discussões e questionamentos sobre os pilares para a construção de uma sociedade sustentável, de fato.
Como bem antecipa a filha do autor em um belíssimo prefácio, encontrar a resposta para a pergunta título do livro é uma tarefa muito difícil. Mas não se iluda, a resposta não está no livro... O autor apenas nos ajuda a buscá-la, cada um no seu próprio ritmo.
O livro foi estruturado em três partes: gestão, liderança e ética, mantendo sempre o papel do líder como pano de fundo. Os capítulos são curtos e densos, com formatos variando entre exemplos, citações e parábolas. Mas os temas são tratados em profundidade, provocando forte reflexão no leitor.
A primeira parte aborda Gestão, enfocando a importância da busca de um sentido no trabalho e, consequentemente, de enxergar um significado maior na sua vida. O autor explica porque o trabalho ainda é tratado como uma espécie de castigo, e porque precisamos mudar este conceito pela ideia da realização de uma obra. De certa forma, isto explica o fato da espiritualidade ser um assunto cada vez mais presente no universo corporativo.
O professor Cortella recorre à física quântica para mostrar a cura para casos crônicos de arrogância e falta de humildade. Em um ensaio acadêmico, em resposta à pergunta "você sabe com quem está falando?", o autor sugere uma resposta com uma força metafísica. Afinal, seja "você" quem for, é apenas um entre 6,4 bilhões de indivíduos, pertencente a uma única espécie entre outras 3 milhões já classificadas, que vive num planeta que gira em torno de uma estrela, que é apenas uma entre 100 bilhões que compõem uma entre outras 200 bilhões de galáxias num dos universos possíveis e que vai desaparecer. E ainda tem gente que se acha...
Cortella fala sobre o lado bom de não saber, pois reconhecer o desconhecimento é um sinal de inteligência fundamental para mudança. O autor aborda também o estoque de conhecimento, a educação continuada como forma de aprimorar competências e habilidades e a importância do reconhecimento para uma nova "lealdade relativa". Afinal, todos querem aumentar a empregabilidade, mas nem sempre estão dispostos ao sacrifício, daí surge a "síndrome de Rocky Balboa".
Os capítulos seguintes tratam da mudança, do medo de enfrentá-la e a capacidade de antecipá-la. E encerra com o grande estrago das pequenas ondas e a necessidade de melhorar a nossa gestão pessoal. Quando um modelo de vida leva a um esgotamento, é fundamental questionar se vale a pena continuar no mesmo caminho. Já pensou nisso?
Na sessão sobre Liderança, o autor afirma que esta é uma virtude e não um dom. E explica que o fundamental é chegar ao essencial, ou seja, tudo aquilo que você não pode deixar de ter como felicidade, amizade, sexualidade, religiosidade, etc. Por isso, contar com mecanismos de reconhecimento é um sinal de inteligência estratégica.
Cortella afirma que uma das principais tarefas do líder é precisamente esclarecer a obra coletiva. Realizar e perceber-se no conjunto da obra é a perfeita sensação daquilo em que me reconheço como indivíduo. Mesmo em tempos velozes, onde o jogo e a estratégia mudam constantemente, temos que permanecer alertas para as duas piores armadilhas para o líder: a arrogância e a fascinação pelo mesmo. Daí a necessidade da renovação pelo outro e a vitalizarão constante.
Um líder precisa ser capaz de inspirar e animar as pessoas. Elas precisam se sentir bem e plenamente integradas à obra. Para isso, Cortella elenca as cinco competências essenciais na arte de liderar: abrir a mente, elevar a equipe, recrear o espírito, inovar a obra e empreender o futuro.
Na última parte, o autor desvenda o mistério da Ética de forma brilhante, com uma fórmula capaz de dirimir qualquer dúvida. Ele sugere três perguntas simples que são essenciais para cuidarmos da vida coletiva. Quero? Posso? Devo? Afinal, a ética é um conjunto de princípios e valores que usamos para responder estas perguntas. E a integridade é um princípio ético para não apequenar a vida, que já é curta.
Enfim, uma leitura agradável, rápida e profunda. Mas nada servirá se você não praticar seus conceitos. Dê-se esta oportunidade! Como diz o professor Cortella, um poder que se serve em vez de servir, é um poder que não serve. Lembra-te que és mortal.
Mario Sergio Cortella
Editora: Vozes

sábado, 28 de janeiro de 2012

O açúcar

Louis Gaillard
O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.

Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira,
dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.

Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem
aos vinte e sete anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.

Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.

Ferreira Gullar

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Desilusão

Frederick Stuart Church - Shooting Stars
As estrelas aparecem
Mostrando a noite.
Os sonhos que não fenecem
Surgem em procissões.
Como terrível açoite
Vem cantando as lembranças
Entoam velhas,
esquecidas confissões,
Antigas e novas promessas.

A insônia feiticeira,
Abre o cofre das grandes recordações.
Mostra imensas ternuras
Registros escritos ontem
No mar das ilusões.
Na falsa areia perdida
Desenhos de corações

E a lágrima
Não contida
Cai no chão,
Convertida.

Desilusão,
.

Apolônia Gastaldi

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Um passarinho canta

Harrison Rucker - Morning Song
Um passarinho canta
para o canto perder-se.

Para o canto fundir-se
no éter puro e sereno,
no silêncio das coisas,
no mistério dos seres.

Um passarinho canta
apenas porque é vida:
a vida é apenas canto,
canto efêmero.

Tasso da Silveira (1895-1968)

Caos

“Numa ação de reintegração de posse de área grande e com muitos ocupantes, a regra orientadora básica do juiz do processo é a Justiça, e buscar à exaustão as conciliações em audiências. Em outras palavras, promover negociações voltadas à desocupação e, para tanto, envolver governos (municipal, estadual e federal) para encontrar soluções alternativas. Afinal, créditos tributários são habilitados para pagamento pela massa falida.
A reintegração coercitiva, com oficiais de Justiça e força policial, só deve ocorrer excepcionalmente e não era o caso da executada no domingo em imóvel pertencente à massa falida da empresa Selecta. Uma empresa que pertenceu ao megaespeculador Naji Nahas.
A falência foi declarada em 2004 e se arrecadou, como bem da massa, uma área de 1,3 milhão de metros quadrados, situada em São José dos Campos, em lugar conhecido por Pinheirinho.
Na reintegração, não estava em jogo apenas o interesse dos cerca de 6 mil ocupantes da área do Pinheirinho. Como todos sabem, os valores arrecadados com a massa falida pagam os créditos de trabalhadores tungados pelos gestores da Selecta. Mais ainda, existem créditos fiscais, previdenciários e até dos credores quirografários. Os pagamentos obedecem a uma ordem legal e, muitas vezes, os quirografários ficam a ver navios.
Desapropriar a área para solucionar o problema dos ocupantes e não deixar os credores desamparados poderia ter sido uma das soluções. Lógico, passada pelo crivo do Ministério Público por meio da curadoria de massas falidas e Judiciário. No caso da falência da Salecta, e como informado pelos jornais, havia um protocolo de intenções em curso no Ministério da Cidade para solucionar o problema dos ocupantes da área.”

Wálter Fanganiello Maierovitch

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Um boi vê os homens

Anita Malfatti
Tão delicados (mais que um arbusto) e correm
e correm de um para o outro lado,
sempre esquecidos de alguma coisa.

Certamente falta-lhes não sei que atributo essencial,
posto se apresentem nobres e graves, por vezes.
Ah, espantosamente graves, até sinistros.

Coitados, dir-se-ia que não escutam
nem o canto do ar nem os segredos do feno,
como também parecem não enxergar
o que é visível e comum a cada um de nós, no espaço.

E ficam tristes e no rasto da tristeza chegam à crueldade.
Toda a expressão deles mora nos olhos –
e perde-se a um simples baixar de cílios, a uma sombra.

Nada nos pelos, nos extremos de inconcebível fragilidade,
e como neles há pouca montanha, e que secura
e que reentrâncias e que impossibilidade
de se organizarem em formas calmas, permanentes e necessárias.

Têm, talvez, certa graça melancólica (um minuto)
e com isto se fazem perdoar a agitação incômoda
e o translúcido vazio interior que os torna tão pobres
e carecidos de emitir sons absurdos e agônicos:
desejo, amor, ciúme(que sabemos nós),
sons que se despedaçam e tombam no campo
como pedras aflitas e queimam a erva e a água,
e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Lembrança da Ria de Faro

Frank Richards - Girl on the beach
Dunas atrás da casa
gafanhotos cor de
madeira cardos cor de areia
ao fim da tarde,
barcos na água rósea
onde a cidade, em frente à casa, cai
De madeira caiada a
casa está
sobre a areia, que escurece quando
a maré devagar desce na praia.

Gastão Cruz

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Tirana

Sheri Howe - The Source
Minha Maria é bonita,
Tão bonita assim não há;
O beija-flor quando passa
Julga ver o manacá.
"Minha Maria é morena,
Como as tardes de verão;
Tem as tranças da palmeira
Quando sopra a viração".
"Companheiros! o meu peito
Era um ninho sem senhor;
Hoje tem um passarinho
Pra cantar o seu amor".
"Trovadores da floresta!
Não digam a ninguém, não!...
Que Maria é a baunilha
Que me prende o coração".
"Quando eu morrer só me enterrem
Junto às palmeiras do vale,
Para eu pensar que é Maria
Que gente no taquaral...".

Castro Alves (1847-1871)

Sofonisba Anguissola

Sofonisba Anguissola (1527-1623)
Pintora do Renascimento
Auto retrato
Numa época em que às mulheres estava apenas reservado o papel de dona do lar e mãe de família, Amilcare Anguissola quis que as suas seis filhas estudassem e desenvolvessem os seus talentos naturais. Estava-se no século XVI em Cremona, na Lombardia, e foi assim que Sofonisba Anguissola se tornou a primeira mulher a ser reconhecida como pintora.
Aos 14 anos, Sofonisba começou a ter aulas de pintura com Bernardino Ciampi, um respeitado retratista e pintor de temas religiosos residente igualmente em Cremona, e, mais tarde, prosseguiu os estudos de pintura com Bernardino Gatti, o que constituiu na época um precedente para que os pintores passassem a aceitar mulheres como suas alunas.
Mai tarde, Miguel Ângelo, viria também a orientar o seu trabalho, embora de maneira informal. Apesar dos incentivos familiares e do apoio de artistas da estirpe de Miguel Ângelo, havia algo que estava vedado a Sofonisba Anguissola dada a sua condição de mulher – o estudo da anatomia e as aulas com modelos vivos. Por isso, desenvolveu um novo estilo de retrato, com ela própria como motivo principal – os autorretratos são frequentes ao longo da sua obra – ou membros da sua família em ambientes informais ou descontraídos, como o famoso quadro O Jogo de Xadrez, em que aparecem três das suas irmãs.
Tinha 27 anos quando Filipe II de Espanha convidou-a para ser pintora oficial em sua corte. Deste período, sobrevivem numerosos retratos.
Gian Paolo Lomazzo (1538-1592), no seu Livro, concebeu um diálogo imaginário entre Leonardo da Vinci e o escultor grego Fídias, no qual o primeiro afirma: “Quero chamar a tua atenção para os milagres de uma mulher de Cremona chamada Sofonisba, que tem surpreendido todos os príncipes e sábios da Europa com as suas pinturas. (…) Muitos valorosos têm pensado que ela recebeu o pincel da própria mão do divino Ticiano”.
A pintora apenas viria a casar em 1571, já aos 39 anos, num casamento que lhe foi arranjado por Filipe II. Sofonisba casou-se com D. Francisco de Moncada, filho do vice-rei da Sicília, continuando a viver em Espanha. Em 1578, regressaram a Itália, mais concretamente a Palermo, onde D. Francisco viria a falecer no ano seguinte.
Aos 47 anos, durante uma viagem para Cremona, conheceu Orazio Lomellino, o comandante do navio em que viajou e consideravelmente mais jovem do que ela, com quem se casaria. A fortuna do marido e uma pensão generosa de Filipe II permitiram a Sofonisba viver desafogadamente e entregar-se por completo à sua pintura, sem nunca ter vendido um só dos seus quadros.
Com 90 anos e a vista bastante enfraquecida por cataratas, voltou à Sicília, onde veio a falecer aos 96 anos.
Algumas de suas obras:
Ela e suas irmãs jogando xadrez
Family
Two Sisters and a Brother of the Artist

domingo, 22 de janeiro de 2012

Ramo

Sir Frank Dicksee - The End of the Quest
Talvez eu não consiga quanto amo
ou amei teu ser dizer, talvez
como num mar que tu não vês
o meu corpo submerso seja o ramo
final que estendo já não sei a quem.

Gastão Cruz

Venho de longe, trago o pensamento

Venho de longe, trago o pensamento
Banhado em velhos sais e maresias;
Arrasto velas rôtas pelo vento
E mastros carregados de agonias.
Provenho desses mares esquecidos
Nos roteiros de há muito abandonados
E trago na retina diluídos
Os misteriosos portos não tocados.
Retenho dentro da alma, preso à quilha
Todo um mar de sargaços e de vozes,
E ainda procuro no horizonte a ilha
Onde sonham morrer os albatrozes...
Venho de longe a contornar a esmo
O cabo das tormentas de mim mesmo.

Paulo Bonfim

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Velha história

Depois de atravessar muitos caminhos
Um homem chegou a uma estrada clara e extensa
Cheia de calma e luz.
O homem caminhou pela estrada afora
Ouvindo a voz dos pássaros e recebendo a luz forte do sol
Com o peito cheio de cantos e a boca farta de risos.
O homem caminhou dias e dias pela estrada longa
Que se perdia na planície uniforme.
Caminhou dias e dias…
Os únicos pássaros voaram
Só o sol ficava
O sol forte que lhe queimava a fronte pálida.
Depois de muito tempo ele se lembrou de procurar uma fonte
Mas o sol tinha secado todas as fontes.
Ele perscrutou o horizonte
E viu que a estrada ia além, muito além de todas as coisas.
Ele perscrutou o céu
E não viu nenhuma nuvem.

E o homem se lembrou dos outros caminhos.
Eram difíceis, mas a água cantava em todas as fontes
Eram íngremes, mas as flores embalsamavam o ar puro
Os pés sangravam na pedra, mas a árvore amiga velava o sono.
Lá havia tempestade e havia bonança
Havia sombra e havia luz.

O homem olhou por um momento a estrada clara e deserta
Olhou longamente para dentro de si
E voltou.

Vinícius de Moraes (1913-1980)

Aldo de Sá Brito Souza Neto

Aldo de Sá Brito Souza Neto
Nasceu em 20 de janeiro de 1951, no Rio de Janeiro, filho de Aldo Leão de Souza e Therezinha Barros Câmara de Souza.
Concluiu o ginásio no Colégio Santo Inácio e fez o curso científico no Colégio Mallet Soares, no Rio de Janeiro.
Como militante da ALN (Ação Libertadora Nacional),foi do Comando Regional da organização. Preso no dia 2 de janeiro de 1971 pelos agentes do DOI-CODI de Belo Horizonte, sendo imediatamente torturado, juntamente com outros companheiros.
Jornais do dia seguinte publicaram a notícia de sua prisão como decorrência de uma frustrada ação armada. Entretanto, Aldo, que acabara de chegar do Rio de Janeiro, foi preso como suspeito na participação do sequestro do embaixador da Suíça no Brasil (até aquele momento ainda em curso), Giovanne Enrico Bucher.
Dois dias após a sua prisão, os jornais publicaram um desmentido.
Aldo, já muito torturado, passou a ser castigado com a chamada "Coroa de Cristo", fita de aço que vai sendo gradativamente apertada, esmagando aos poucos o crânio da vítima.
No dia 6 de janeiro, não resistindo a tão bárbaros sofrimentos, morreu com o crânio apresentando um afundamento de cerca de 2 cm.
Apesar do testemunho dos companheiros de prisão, os órgãos de repressão divulgaram nota oficial noticiando que sua morte fora em decorrência da tentativa de fuga, ao saltar do terceiro andar de um prédio.
A certidão de óbito atesta sua morte em 7 de janeiro de 1971, sendo firmada por outro médico, que não participou da necrópsia, o Dr. Djezzar Gonçalves Leite. Informa que Aldo morreu no Hospital Militar (BH/MG), sendo enterrado pela família em Cemitério do Rio de Janeiro.
Hoje ele estaria fazendo 61 anos.
Palavrador
lavra,
palavra
palavra
palenta,
palenta
paluta
de labuta
sol a sol:
só palavra.
látego de consciência,
premência que escalavra
sílaba à sílaba
a fibra da alma bruta
que brota
lenta,
lenta,
de uma palavra
muda.

farfalhantes palavras
de florescente consciência
que lavra,
que lavra
palavra,
fruto da língua
gélida e morta.
muda lambida
de flor e desejo
desabrochando ensejo
de vida.

muda a lenta
muda a luta
da palavra muda.

silêncio de semente
florescendo aos ventos,
farfalhando aos tempos.

sim à palavra
que muda,
à sílaba escrita,
à sílabainscrita
na consciência
que brota
da semente
da flor muda
e transcende
o suor da labuta
e o sangue da vida
que luta
que luta
em lenta
e muda
palavra
semeando
em branca folha
farfalhante consciência
do ser lenta,
do ser lenta,
do ser a labuta
do porque luta.

Raul Longo

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Alguns Toureiros

Marinero De Luces
Eu vi Manolo Gonzáles
e Pepe Luís, de Sevilha:
precisão doce de flor,
graciosa, porém precisa.
Vi também Julio Aparício,
de Madrid, como Parrita:
ciência fácil de flor,
espontânea, porém estrita.
Vi Miguel Báez, Litri,
dos confins da Andaluzia,
que cultiva uma outra flor:
angustiosa de explosiva.
E também Antonio Ordóñez,
que cultiva flor antiga:
perfume de renda velha,
de flor em livro dormida.
Mas eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,
o de nervos de madeira,
de punhos secos de fibra
o da figura de lenha
lenha seca de caatinga,
o que melhor calculava
o fluido aceiro da vida,
o que com mais precisão
roçava a morte em sua fímbria,
o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida,
sim, eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:
como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,
e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.

João Cabral de Melo Neto (1920-1999)

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Da gaiola do nosso relacionamento

Da gaiola do nosso relacionamento
em algum momento,
o trinco se abriu:
o amor fugiu.
Por hábito, continuamos
a trocar a água
e a renovar o alpiste,
Mecanicamente, cuidamos
de uma ave
que não mais existe.

Wilson Gorj

Opus Dei

A obra contra revolucionária da Opus Dei A Santa Máfia
Já se completam mais de 80 anos da organização católica Opus Dei, até pouco desconhecida, apresentada geralmente como um tipo seita, sociedade secreta. No entanto, a ideia de “seita” só serviu para ocultar o fato de que esta poderosa organização formou dentro da Igreja um lobby político decisivo e se fundiu ao longo dos seus oitenta anos com todos os governos de direita e extrema-direita, apoiando ditaduras militares na América Latina.
A América Latina é um dos principais redutos da Igreja Católica, que se apoia sobre as estruturas políticas e econômicas atrasadas do continente. Não por acaso houve várias ditaduras militares nas últimas décadas. A Igreja exerce nesta parte do mundo forte influência ideológica entre a classe operária e apoiou todas as ditaduras de direita contra o Ascenso revolucionário dos trabalhadores. Uma das principais frentes da direção da Igreja na América Latina foi o combate à crescente influência da Teologia da Libertação, escola fundada pelo teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, levado à frente também pelo norte-americano Cornell West e pelo brasileiro Leonardo Boff. O Vaticano passou a combater essas idéias com vigor, dando a tarefa à Opus Dei no combate aborto.
Sempre que os militares estiveram no poder a Opus Dei esteve muito à vontade. A Opus Dei está por trás de golpes e tentativas de golpes contra os governos que não lhe convinham e que não convinham ao imperialismo e à burguesia local.
No Brasil A Opus Dei teve bastante influência no maior e mais importante País da América Latina. Seus trabalhos no Brasil tiveram início a partir de 1957, em Marília, no estado de São Paulo, quando o então bispo D. Hugo Bressane de Araújo insistiu com José Maria Escrivá que fosse instituído um centro da Opus Dei no País.
Nesta mesma cidade foi fundado também um centro feminino, iniciado com os trabalhos da professora Gabriela Malvar Fonseca, da nutricionista Rosário Alonso e da filósofa Maria Clara Constantino.
Como previsto, um ano depois a Opus Dei foi erguida em São Paulo, capital, num apartamento improvisado na Rua Piauí, mas logo depois começaram a fundar centros da Opus Dei em residências universitárias para atrair jovens estudantes de classe média.
O primeiro brasileiro da Opus Dei a se ordenar sacerdote foi o Monsenhor Pedro Barreto Celestino, que após um período em Roma recebeu do próprio Escrivá sua ordenação sacerdotal, em 1971.
A partir de 1975 já realizavam várias atividades culturais e sociais para agregar mais fieis. A essa altura já haviam inaugurado sedes no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Londrina, Brasília, Campinas, Ribeirão Preto, São José dos Campos, Niterói e muitas outras cidades, onde atuaram com trabalhos menores, porém sempre centralizados pela Opus Dei em São Paulo. Até a década de 70, a Opus Dei dividia ainda a simpatia dos católicos de extrema-direita com a Tradição, Família e Propriedade (TFP).
A Opus Dei tem forte presença nas universidades, principalmente na USP (Universidade de São Paulo), nas Faculdades de Direito e Medicina. Vários membros e cooperadores da Opus Dei fazem parte do corpo docente universitário.
Além das universidades, a Opus Dei possui também grande influência no meio jurídico. Já na década de 50 essa era uma das suas principais instâncias de atuação. Um dos principais membros em São Paulo foi José Geraldo Rodrigues Alckmin, nomeado ministro do STF (Superior Tribunal Federal) pelo governo Médici, em 1972, e tio do ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin, este também membro da Opus Dei.
No ramo financeiro, não é difícil identificar as ligações da “Obra” brasileira com a espanhola, de onde surgiu e o seu alinhamento com o chamado modelo neoliberal decretado pelos capitalistas depois do período das ditaduras militares.
Com seus membros empregados na cúpula do Banco Santander, esta instituição comprou o Banespa e o Meridional, enquanto que o BBVA (Banco Bilbao Vizcaya Argentária) recebeu os ativos do Banco Excel-Econômico durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.
Seu monopólio atinge também a imprensa. Não só no Brasil, mas em muitos outros países latino americanos, como o El Observador, no Uruguai; o El Mercúrio, no Chile; o La Nación, na Argentina e O Estado de S. Paulo, no Brasil.
O membro mais importante da Opus Dei na imprensa brasileira é o professor de pós-graduação da Universidade de Navarra, Carlos Alberto di Franco, numerário e comentarista do Estadão e da Rádio Eldorado. Outro importante membro é o também numerário Guilherme Doring Cunha Pereira, herdeiro da Gazeta do Povo, no Paraná.
O principal nome da organização no Brasil é o jurista Ives Gandra da Silva Martins. Assim, como ele, um número expressivo de figuras influentes no interior da burguesia pertencem discretamente à seita católica fascistóide.
Com o carimbo do Vaticano, a Opus Dei, um dos pilares da Igreja Católica e da propagação a ideologia de extrema-direita e do imperialismo, realiza neste momento uma campanha profundamente reacionária contra os direitos básicos das mulheres e contra métodos científicos avançados para a cura de doenças, como o uso das células-tronco e embriões em pesquisas científicas etc.
Vimos muito bem isso na Campanha a presidência de José Serra onde o tema aborto virou centro da atenção.
Os trabalhadores da cidade e do campo, o movimento popular e operário em todo o País, bem como a juventude, as mulheres e os negros devem prestar a máxima atenção aos desenvolvimentos desta campanha pelo aumento da repressão no país conduzida pelo imperialismo mundial, pelos grandes capitalistas nacionais, pela direita e pela Igreja.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Água de remanso

Janet Hill
Cismo o sereno silêncio:
sou: estou humanamente
em paz comigo: ternura.

Paz que dói, de tanta.
Mas orvalho. Em seu bojo
estou e vou, como sou.

Ternura: maneira funda
cristalina do meu ser.
Água de remanso, mansa
brisa, luz de amanhecer.

Nunca é a mágoa mordendo.
Jamais a turva esquivança,
o apego ao cinzento, ao úmido,
a concha que aquece na alma
uma brasa de malogro.

É ter o gosto da vida,
amar o festivo, e o claro,
é achar doçura nos lances
mais triviais de cada dia.

Pode também ser tristeza:
tranquilo na solidão macia.
Apaziguado comigo,
meu ser me sabe: e me finca
no fulcro vivo da vida.

Sou: estou e canto.

Thiago de Mello

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Palavras de Whitman

E agora, cavalheiros, eu vos deixo
uma palavra
que fique nas vossas mentes
e nas vossas memórias
como princípio e também como fim
de toda a metafísica.

(Tal qual o professor aos estudantes
ao encerrar o seu curso repleto.)

Tendo estudado antigos e modernos,
sistemas dos gregos e dos germânicos,
tendo estudado e situado Kant,
Fichte, Schelling e Hegel,
situado a doutrina de Platão,
e Sócrates superior a Platão,
e outros ainda superiores a Sócrates
buscando pesquisar e situar,
tendo estudado bastante o divino Cristo,
eu vejo hoje reminiscências daqueles
sistemas grego e germânico,
deparo todas as filosofias,
templos e dogmas cristãos encontro,
e mesmo sem chegar a Sócrates eu vejo
com absoluta clareza,
e sem chegar até o divino Cristo,
eu vejo
o puro amor do homem por seu camarada,
a atração de um amigo pelo amigo,
de uma mulher pelo marido e vice-versa
quando bem conjugados,
de filhos pelos pais, de uma cidade
por outra, de uma terra
por outra.

Walt Whitman (1819-1892)

domingo, 15 de janeiro de 2012

Haikai

Nos fios
os pássaros
escrevem música.

Eugénia Tabosa

Antes do nome

Carl Fredrik Hill
Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o "de", o, "aliás",
o "o", o "porém" e o "que", esta incompreensível
muleta que me apoia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.

Adélia Prado

sábado, 14 de janeiro de 2012

Civilização em Transição

Pieter Brueghel-The Harvesters
“A Idade Média, a Antiguidade e a Pré-história ainda
não estão extintas, como muitos 'esclarecidos' pensam,
mas continuam alegremente vivas,
em segmentos significativos da população.
As mais antigas mitologias e magias continuam,
como sempre, prosperando em nossos meios
e só são ignoradas por alguns poucos
que se distanciaram do seu estado original,
através da educação racionalista.
Sem levar em conta a simbologia eclesiástica,
visível em toda parte,
que corporifica uma história espiritual de seis milênios
e a repete constantemente,
os seus parentes pobres, ou seja,
os conceitos e rituais mágicos, continuam vivos,
apesar de toda instrução escolar” .

Carl Gustav Jung (1875-1961)