segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Poema de Ano-Novo

Arthur Georg Von Ramberg
É preciso que nos encontremos diante do amor
como as árvores fêmeas cuja raiz
é a mesma e se perde na terra profana
É preciso...a tristeza está no fundo
de todos os sentimentos
como a lágrima
no fundo de todos os olhos
Sejamos graves e prodigiosos, ó minha amada,
e sejamos também irmãos e amigos.
É preciso que levemos diante de nós
o retrato das nossas almas
como se fôssemos
a um tempo a Verônica e o Crucificado
Eu sou o eterno homem e hoje que a dor fecunda o tempo
eu sinto mais que nunca a vontade
de fechar os braços sobre a minha miséria.
Fiquemos como duas crianças pensativas sentadas numa escada
- todos serão os peregrinos e apenas nós os contemplados.

Vinicius de Moraes (1913-1980)

Horizonte

Lilya Corneli

Alma em suspiro
pelo encontro
do que fica
sempre mais longe.

Henriqueta Lisboa (1901-1985)

domingo, 30 de dezembro de 2012

Entardecer…

(Bunny Oliver)
O rumor
musical do vento
atravessa
a copa das folhas
na brisa da tarde
flores jovens
e colibris
vestem
a casa do sol
em volta do lago
cúmplices
do mistério da luz
na refracção da cor
mais uma vez
sente-se
uma religiosidade
sedutora
pela ausência
latente
dos vários silêncios
que povoam
a máscara do demiurgo
na abertura da cidade ao mundo.

João Maria Nabais

Mudo convite

Stefan Culev
Há palavras que vestem o seu corpo
tecem fugas:

Sangue.
Carne.
Mundo.

E há palavras que de tão silenciosas
deitam nuas:

Raul Macedo

sábado, 29 de dezembro de 2012

Dolorosas astúcias de salvação

Lilya Corneli - Girassol noturno
Circulo às tontas
Ansiosa pelo lusco-fusco,
O legítimo anunciador da madrugada.

Busco repouso
Enviesada
Esperando o silêncio maior.

Invento purificações com água quente
Sob luz de velas imaginárias,
Num ritual santificado.

Não é de hoje que colho
Com minhas mãos ásperas
Essas dolorosas astúcias de salvação.

Isabella Maia

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Fragmentos de Um Discurso Amoroso

Abraço




O gesto do abraço amoroso
parece realizar por um momento,
para o sujeito, o sonho de união total com o ser amado.






Adorável
Não conseguindo nomear a especialidade
do seu desejo pelo ser amado,
o sujeito apaixonado chega a essa palavra
um pouco tola: adorável.

Afirmação












Ao contrário de tudo e contra tudo,
o sujeito afirma o amor como valor.

Angústia


O sujeito apaixonado,
do sabor de uma ou outra contingência,
se deixar levar pelo medo de um perigo,
de uma mágoa, de um abandono,
de uma reviravolta - sentimento que ele
exprime sob o nome de angústia.




Ausência
Todo episódio de linguagem que põe em cena
a ausência do objeto amado - quaisquer
que sejam a causa e a duração
- e tende a transformar essa ausência em prova de abandono.



Chorar









Propensão particular do sujeito apaixonado
a chorar: modos de aparição
e função das lágrimas do sujeito.



Compreender



Ao perceber repentinamente
o episódio amoroso como um nó
de razões inexplicáveis e de soluções bloqueadas,
o sujeito exclama:
"Quero compreender (o que me acontece)!"




Coração
Essa palavra vale por todas as espécies
de movimentos e desejos, mas o que é constante,
é que o coração se constitui um objeto de dom –
seja ignorado, seja rejeitado.
Corpo
Todo pensamento, toda emoção,
todo interesse suscitado no sujeito
apaixonado pelo corpo amado.
Dedicatória
Episódio de linguagem que acompanha
todo presente amoroso, real ou projetado, e, ainda,
mais geralmente, todo gesto, afetivo ou interior,
pelo qual o sujeito dedica alguma coisa ao ser amado.
Despelado
Sensibilidade especial do sujeito apaixonado,
que o torna vulnerável, à mercê das mais leves feridas.
Desrealidade
Sentimento de ausência,
fuga da realidade experimentada
pelo sujeito apaixonado, diante do mundo.
Errância
Apesar de que todo amor é vivido como único
e que o sujeito rejeite a ideia de repeti-lo
mais tarde em outro lugar, às vezes ele surpreende
em si mesmo uma espécie
de difusão do desejo amoroso;
ele compreende então que está destinado a errar
até a morte, de amor em amor.
Esconder
Figura deliberativa:
o sujeito apaixonado se pergunta,
não se deve declarar ao ser amado que o ama
(não é uma figura de confissão), mas
até que ponto deve esconder dele
suas "perturbações" (as turbulências)
da sua paixão: seus desejos,
suas aflições, enfim, seus excessos
(na linguagem raciniana: seu furor).
Escrever
Enganos profundos, debates e
impasses que provocam o desejo de "exprimir"
o sentimento amoroso numa criação
(notadamente de escritura).
Espera
Tumulto de angústia suscitado
pela espera do ser amado, no decorrer de mínimos
atrasos (encontros, telefonemas, cartas, voltas).
Eu-te-amo
A figura não se refere
à declaração de amor, à confissão, mas
ao repetido proferimento do grito do amor).
Festa
O sujeito apaixonado vive cada encontro
com o ser amado como
uma festa.
Louco
O sujeito apaixonado é atravessado
pela ideia de que ele está ou está ficando louco.
Magia
Consultas mágicas, pequenos
ritos secretos e ações de graça
não estão ausentes da vida
do sujeito apaixonado,
qualquer que seja sua cultura.
Ternura
Gozo, mas também avaliação inquietante
dos gestos ternos do objeto amado,
na medida em que o sujeito compreende
que esse privilégio não é para ele.
União
Sonho de total união com o ser amado.

Autor:
Roland Barthes (1915-1980)
Fragmentos de Um Discurso Amoroso
lustrações: Alone Gut

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Viagem

Helga Aichinger
Viajar
mas não
para

viajar
mas sem
onde

sem rota sem ciclo sem círculo
sem finalidade possível.

Viajar e nem sequer sonhar-se
esta viagem.

Orides Fontela (1940-1998)

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Cada um lê com os olhos que tem

Delphin Enjolras
“Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta onde os pés pisam. Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender o que alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é a sua visão de mundo. Isto faz da leitura sempre um releitura. [...] Sendo assim, fica evidente que cada leitor é coautor.”
Leonardo Boff

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Sei lá...

Henri Matisse
Tem dias que eu fico
Pensando na vida
E sinceramente
Não vejo saída
Como é, por exemplo
Que dá pra entender
A gente mal nasce
Começa a morrer
Depois da chegada
Vem sempre a partida
Porque não há nada
Sem separação

Sei lá, sei lá
A vida é uma grande ilusão
Sei lá, sei lá
Só sei que ela está com a razão

A gente nem sabe
Que males se apronta
Fazendo de conta
Fingindo esquecer
Que nada renasce
Antes que se acabe

E o sol que desponta
Tem que anoitecer
De nada adianta
Ficar-se de fora
A hora do sim
É um descuido do não

Sei lá, sei lá
Só sei que é preciso paixão
Sei lá, sei lá
A vida tem sempre razão.

Vinícius de Moraes (1913-1980)

Manuel de Barros

Caricatura
Esse é Bernardo. Bernardo da Mata. Apresento.
Ele faz encurtamento de águas.
Apanha um pouco de rio com as mãos e espreme nos vidros
Até que as águas se ajoelhem
Do tamanho de uma lagarta nos vidros.
No falar com as águas rás o exercitam.
Tentou encolher o horizonte
No olho de um inseto - e obteve!
Prende o silêncio com fivela.
Até os caranguejos querem ele para chão.
Viu as formigas carreando na estrada 2 pernas de ocaso
para dentro de um oco... E deixou.
Essas formigas pensavam em seu olho.
É homem percorrido de existências.
Estão favoráveis a ele os camaleões.
Espraiado na tarde -
Como a foz de um rio - Bernardo se inventa...
Lugarejos cobertos de limo o imitam.
Passarinhos aveludam seus cantos quando o veem.

Manoel de Barros
Bernardo da Mata é a própria emanação do "eu" de Manoel (na imagem). Ali ele enxerga, meio a simplicidade campeira, sertaneja, a jazida que tanto lhe produziu versos brilhantes. Na realidade Bernardo foi um dos peões da fazenda de Manoel. O mais matreiro, o mais próximo da terra, aquele com quem até os insetos conversavam, em quem pássaros pousavam, um ser humano além do humano, parte integral da natureza a ponto de obter respeito dela. Coisas que somente o transcendental explicaria: como o poeta encontrou-se com sua poesia viva, vivificada, "coisada" e sobretudo humana. Típica coincidência sincrônica que acontece em vida...quase como o evangelista se visse o próprio Cristo viver em sua frente.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Estrela da vida inteira

Olho a praia. A treva é densa.
Ulula o mar, que não vejo,
Naquela voz sem consolo,
Naquela tristeza imensa
Que há na voz do meu desejo.

E nesse tom sem consolo
Ouço a voz do meu destino:
Má sina que desconheço,
Vem vindo desde eu menino,
Cresce quanto em anos cresço.

― Voz de oceano que não vejo
Da praia do meu desejo...

Manuel Bandeira (1886-1968)

sábado, 22 de dezembro de 2012

Frase

Georges Jules Auguste Cain
“Eu acredito no prazer da carne
e na solidão irremediável da alma”.
Hjalmar Söderberg (1869-1941)

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

É o Tempo

Tom Mc Nemar
Não é a rima das palavras no fim da linha
Não é a forma
Não é a estrutura
Não é a solidão
Não é o espaço
Não é o céu
Não é o amor
Não é a luminosidade
Não é o sentimento
Não é a metrificação
Não é a época
Não é a intencionalidade
Não é o desejo
Não é a temperatura
Não é a esperança
Não é o assunto escolhido
Não é a morte
Não é o nascimento
Não é a paisagem
Não é a relação de palavras
Não é o que há entre as palavras
Não é o cronômetro
Não é o...
É o tempo.
Charles Bernstein
Tradução: Marília Garcia

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

A Cigarra e a Formiga

Uma cigarra feliz
Passou o verão se divertindo,
E no primeiro dia de inverno,
Viu que estava faminta,
De carne e pão
Nenhum pedaço tinha!
Então como pedinte foi
À sua vizinha formiga
Para pedir emprestado
Um pouco de trigo para comer
Até a estação acabar.
"Eu lhe pagarei", disse ela
"Com palavra de animal
Duas vezes a mais
Antes da colheita acabar."
A formiga gosta de ajudar
(E possa a auxiliar)
Dando um pouco para emprestar
"Como passou o verão?"
Perguntou sem hesitação
À pedinte de pão
"De dia e noite cheguei
Cantando o verão passei."
"Você cantava?
Agora terás que dançar."
Jean de La Fontaine (1621-1695)

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Pois pois

Guido Reni
O Padre Antônio Vieira pregava de encostar
as orelhas na boca do bárbaro.
Que para ouvir as vozes do chão
Que para ouvir a fala das águas
Que para ouvir o silêncio das pedras
Que para ouvir o crescimento das árvores
E as origens do Ser. Pois Pois.
Bernardo da Mata nunca fez outra coisa
Que ouvir as vozes do chão
Que ouvir o perfume das cores
Que ver o silêncio das formas
E o formato dos campos. Pois Pois.
Passei muitos anos a rabiscar, neste caderno,
os escutamentos de Bernardo. Ele via e ouvia inexistências.
Eu penso agora que esse Bernardo tem cacoete para poeta.

Manoel de Barros