Quando a poderosa Igreja Católica começou a ter sua autoridade moral questionada na Europa, por volta do final do século XV, em razão da corrupção e da lassidão de seus líderes, vários foram os pensadores, dentro e fora da própria Igreja, que defenderam reformas na instituição – quando não, a superação da mesma. Dois desses reformadores foram Erasmo de Roterdã e Martinho Lutero.
O espírito reformador
Erasmo, apesar de profundamente cristão, se opôs ao domínio da Igreja Católica na ciência, na cultura e na Educação. Seguia a linha de tradição de Tertuliano e Pelágio, que consideravam normal que leigos cultos pudessem perfeitamente conduzir a Igreja, recusando a exclusividade dessa função ao clero. Ele era, em grande medida, um produto da nova civilização urbana renascentista, e ficou contente em notar, por exemplo, que um número cada vez maior de escolas estavam sendo fundadas por pessoas laicas, quando a Igreja ainda reivindicava o direito de monopolizar o ensino.
Essa defesa da diminuição do papel clerical na vida das pessoas era fruto de sua crença de que não podiam haver intermediários entre os cristãos e as Escrituras, e isso era um ponto que ele tinha em comum com todos os reformadores, numa época em que as tentativas de se estudar a Bíblia por si só constituíam prova circunstancial de heresia – e a pessoa poderia ir para a fogueira por isso. A imprensa popularizou o acesso às Escrituras de tal modo que os censores da Igreja já não podiam dar conta do volume de cópias publicadas, e Erasmo saudou esse acontecimento de sua Época:
Será que Cristo ficaria ofendido que o leiam aqueles que Ele escolheu para seus ouvintes? Em minha opinião, o agricultor deveria lê-lo, junto com o ferreiro e o pedreiro, e mesmo prostitutas, alcoviteiras e turcos. Se Cristo não lhes recusou sua voz, tampouco serei eu a recusar-lhes seus livros”
A Bíblia era, para Erasmo, bem como para os reformadores, o centro da vida cristã. Rejeitavam o cristianismo mecânico da Igreja Católica e suas indulgências, peregrinações, privilégios especiais, todo o negócio de conquistar a salvação com dinheiro.
Pontos de divergência com protestantes
Onde estaria, então, a salvação para os cristãos? Aqui é o ponto onde começam as divergências entre a reforma erasmiana e a luterana (e mais tarde, a calvinista).
Erasmo defendia que a salvação era conquistada com a devoção privada, de maneira direta, sem intermediários. A Igreja, na sua visão, precisava reduzir a teologia ao mínimo, de modo a simplificar a fé e a salvação. Os crentes poderiam ou não aceitar as definições oficiais dos teólogos, usando o próprio discernimento para solucionar as dúvidas.
Sua proposta era abominável para os olhos da Igreja, ávida, pelo contrário, por mais controle e autoridade sobre os fiéis, mas também era incompatível com a ideia dos reformadores protestantes. Erasmo defendia uma reforma moral, pura e simples; para Martinho Lutero, uma reforma moral da Igreja era importante, mas não podia parar por aí. Ela só faria sentido se ocorresse dentro de um contexto de mudança institucional e correções drásticas na doutrina. Não era questão de apenas simplificar a doutrina mas de corrigi-la – o que significava mais doutrinas, não menos.
Os ataques e acusações entre católicos e protestantes
Erasmo se mantinha neutro com relação aos ataques violentos de Lutero contra o clero, e as respostas dos correligionários destes na mesma moeda. Lutero convocava a cristandade a “lavar suas mãos no sangue desses cardeais, papas e o restante da ralé da Sodoma romana”, enquanto os teólogos papistas bradavam pela execução “daquele pestilento flato de Satanás, cujo mau cheiro chega aos céus”. Lutero não abria mão de fazer valer suas doutrinas nas áreas de sua influência, e Erasmo deplorava o fato do líder protestante haver recorrido aos príncipes germânicos para apoiarem sua Reforma. O governante de cada Estado definir do alto a religião do seu povo era um acinte. Sendo pacifista e tolerante, não aceitava o princípio da “guerra justa”, contra as religiões minoritárias, como Lutero. Conforme escreveu ao duque da Saxônia: “tolerar seitas pode parecer-lhe um grande mal, mas ainda é muito melhor do que a guerra religiosa”.
Erasmo contesta Lutero publicamente
Martinho Lutero publicamente mantinha uma postura de respeito frente a Erasmo, mas na verdade, via-o como um “cético orgulhoso”, um homem de pouca fé. Por sua vez, Erasmo considerava Lutero como um “godo”, um homem do passado, por conta de seu radicalismo fanático.
A ampla disseminação das visões deterministas da salvação defendidas por Martinho Lutero obrigou Erasmo a sair da neutralidade. Em sua Discussão do Livre-Arbítrio (1524) rejeitou a ideia de predestinação, enfatizando a capacidade humana de obter a salvação pelos seus próprios meios, obtendo de Lutero uma resposta, como sempre rude.
À medida que Lutero ia se impondo, Erasmo ia se afastando dos reformadores. Passou seus últimos dias em cidades tolerantes onde desejava escapar da guerra religiosa que estava por vir. Acreditava que o mundo estava enlouquecendo, e em uma de suas últimas obras, Sobre a Doce Concórdia da Igreja, fez seu último apelo por tolerância mútua, humildade, boa vontade e moderação. Foi atacado violentamente pelos dois lados, o católico e o luterano.
A terceira via que não vingou
Alguns dos intelectuais mais proeminentes defendiam as propostas de Erasmo. O reformador moderado Ecolampédio escreveu-lhe, em 1522: “Não desejamos nem a igreja luterana, nem a católica. Queremos uma terceira”. Como todos sabem, infelizmente essa terceira igreja, como o próprio Erasmo se referia, não prevaleceu, e até hoje assistimos a essa disputa teológica entre católicos e protestantes, mas que pelo menos já sem as cenas de matança, guerras, expulsões, e conflitos violentos de tempos atrás. O mundo perdeu a chance de ter uma instituição religiosa mais tolerante e defensora da paz, como era o sonho de Erasmo, e em vez disso, viu aumentar cada vez mais as disputas e guerras em torno da fé com a Reforma e a Contra-Reforma.