René Magritte - Os amantes
Vai, portanto, não hesites.
Procura conquistar todas as mulheres.
Em mil, haverá talvez uma para te resistir.
E quer cedam, quer resistam, todas gostam de ser cortejadas.
Mesmo se fores derrotado, a derrota será sem perigo.
Mas por que serias repelido,
já que toda volúpia nova parece mais gostosa
e somos mais seduzidos por aquilo que não nos pertence?
A colheita é sempre mais abundante no campo alheio,
e o rebanho do vizinho tem as tetas mais grossas.
(Ovídio – Sec. I a.C)
Esta frase foi escrita por Ovídio no seu livro “A arte de Amar” no século I a.C. Este livro levou Ovídio a ser expulso de Roma pelo imperador Augusto, uma vez que promovia o amor extraconjugal, algo intolerável para um governo que valorizava a família e os bons costumes. Apesar de ser um livro muito antigo, suas ideias ainda permanecem atuais, pois a natureza humana não se modificou de lá para cá. O homem sempre foi um ser sexual e a mulher sempre foi um ser afetivo. Mas por que isso sempre foi assim? Por que o homem é um animal tão devotado ao sexo e a mulher aos sentimentos? Numa primeira análise, somos levados a crer que esses impulsos são naturais. Mas numa análise mais atenta, percebemos que esses impulsos foram determinados historicamente. O homem não é somente um ser biológico determinado pela natureza, mas também é determinado historicamente pelas práticas sociais. A sexualidade e a reprodução são características imanentes no ser humano, assim como a função da alimentação; no entanto, o amor transcende a mera reprodução e sexualidade. O amor não surge como algo pronto e acabado, mas sim se desenvolve historicamente. Tal é a hipótese que tentaremos demonstrar.
Tornou-se comum pensar que o amor surge na espécie através da atração sexual. Ele seria um sentimento inconsciente que a espécie usou para se reproduzir. Contudo, o amor não pode ser definido apenas como desejo sexual. Do nosso ponto de vista, o amor não tem por fim a sexualidade e a reprodução. A reprodução teve um papel fundamental na criação do amor na espécie humana; todavia, em sua evolução ele transcendeu a mera sexualidade.
A psicologia e a psicanálise sempre partiram do pressuposto de que os acontecimentos da infância deixam marcas profundas na estruturação da personalidade. Esse postulado nos faz pensar a infância da humanidade. Essa infância deixou marcas indeléveis na natureza humana e determinou as diferenças entre os homens e a mulheres. Para entendermos a relação amorosa em nossos dias, devemos buscar uma resposta nos primórdios da humanidade, quando o homem era ainda um antropoide. A resposta para entendermos a origem do sentimento do amor se encontra numa época onde o homem ainda não se diferenciava da natureza. Os impulsos animais ainda não haviam se transformados em impulsos humanos. O nosso argumento parte de pressuposto que há traços mnemônicos de épocas passadas que ressoa em nós. O passado da humanidade permanece determinando nossas ações, nossos sins e nãos, nossas escolhas e necessidades.
Foi longo o processo que formou o amor ao sexo oposto, foram necessários muitos estímulos repetitivos para que o desejo se tornasse nivelado. Hoje o homem ama com os olhos e a mulher com os ouvidos. O homem é atraído quando olha uma bela forma, um corpo bem definido, uma beleza estonteante. Já a mulher é atraída por uma boa conversa, pelo cavalheirismo, pela delicadeza e pelos bons modos. O homem é mais visual, suas emoções, desejos estão ligadas ao olhar. Já a mulher é auditiva, com uma simples frase ela pode ser conquistada. Já dizia o filósofo alemão Nietzsche, “lançou uma frase no ar, como diversão, e essa frase fez cair uma mulher”. O homem é como um beija-flor, quer copular todas as flores e a mulher é como uma árvore, quer criar raízes e um abrigo para seus pássaros. Mas como será que surgiram estes dois impulsos básicos no homem e na mulher?
Hoje sabemos que o homem tem uma natureza mais sexual que as mulheres. Ele é mais visual, vive mais esteticamente, vive para forma e beleza da mulher. Por sua natureza sexual, o homem quer sempre satisfazer suas pulsões com mulheres sempre diferentes, e sempre se mostra farto de cada uma isoladamente. Ele não é atraído pela individualidade da mulher. Os homens são naturezas eróticas, seu amor é genérico. Quando o homem deixou de usar a força para usufruir o objeto do desejo, a vida se tornou carência. Desde que o homem tornou-se sedentário, passando a constituir famílias, o amor passou a ser uma conquista para suprir uma carência afetiva O homem é carente de beleza. Ele busca o belo em todos os lugares. A beleza é medida, harmonia, proporção. A beleza é fonte de satisfação e bem-estar, ela encanta gerando o desejo e o amor. O amor desde os primórdios da vida conjugal sempre teve como motor a carência. Para superá-la ele teve que ser calculista e engenhoso. No amor o que vale é a esperteza, o engano, a ludibriação. A conquista depende da astúcia do homem. O homem deseja sair de um estado de penúria para um estado de riqueza e satisfação. O amor oscila entre possuir a pessoa amada e não possuir. O cálculo, o procedimento eficaz, a coordenação dos meios com os fins na busca amorosa tornou-se uma necessidade. Coube ao homem usar de todos os artifícios para conquistar a mulher. O desejo não se detém diante de nada, nem mesmo diante do perigo. A mulher, por sua vez, é mais afetiva, vive para o cuidado da casa e da família. A necessidade de casar, constituir família e criar filhos é uma necessidade, um instinto. A mulher que não alcança esse objetivo se frustra, torna-se infeliz. Por isso ela se preocupa com a beleza. A beleza é sua astúcia e a sedução é sua arma, seu cálculo, sua forma de operar. A busca da mulher é sempre por amor e segurança. Ela busca inconscientemente um macho que cuide de sua prole tal como nos primórdios da humanidade. A mulher, de forma geral, quando se trata de enfrentar a realidade social e econômica se sente mais confiável ao lado de um homem. Ela busca inconscientemente um apoio de um marido. Além disso, o amor da mulher, ao contrário do homem, é singular. Ela não ama todo mundo, mas apenas ama um indivíduo em particular. Ela ama naquele instante apenas um, como se houvesse no mundo apenas esse. Talvez seja por isso que a mulher primeiro se apaixona para depois fazer amor, já o homem primeiro faz amor para depois se apaixonar.
Foi a partir do Neolítico, portanto, que surgiu a necessidade de unidade e indivisão com outro ser. A partir do neolítico o desejo sexual de reprodução entre dois seres transcendeu a genitalidade e tornou-se amor. A reprodução e a sexualidade não são mais o fator primordial na relação entre dois seres. Há uma ruptura, uma quebra, uma transcendência do amor em relação à vida. O amor torna-se harmonia e união dos contrários, torna-se atração dos opostos e desejo de unidade e indivisão. No amor buscamos o ser complementar. Amamos o que nos completa, na busca do pleno preenchimento e da perfeição. A vida sem amor torna-se uma vida sem sentido. “O fato de ao instinto do acasalamento, que serve apenas para a reprodução da vida, ter-se juntado o amor, que não se preocupa com ela, é uma imensa libertação em relação à vida. Do mesmo modo que a arte é uma, quando se ergue acima do natural”. (SIMMEL, 1993, p.175). O amor ao emancipar-se dos fins de procriação tornou-se um fim em si mesmo. O amor em seu movimento interno, sua força e ritmo tornou-se vida no indivíduo. “O amor, que se tornou algo totalmente autônomo, transvital, em que se realiza a ruptura em relação à vida e seu serviço, transforma-se de novo em vida na natureza erótica (…)”. (SIMMEL, 1993, 175). Desde que o homem abandonou sua condição de nômade, a vida a dois foi assimilada por seu cérebro como prioridade. O amor tornou-se um impulso orgânico. A partir daí ele nunca mais conseguiu ser só. A vida a dois foi assimilada como um bem supremo, como princípio e fim da vida feliz. Quando o indivíduo está só, sente angústia e insatisfação. É comum o desanimo, a solidão, a ansiedade e a depressão no homem solitário. Mas quando há o amor, toda essa insatisfação desaparece, dando lugar à alegria e a satisfação consigo mesmo.