domingo, 15 de setembro de 2024

Branca de Neve

Branca de Neve, ilustração de Nancy Ekholm Burkett

Eu te guardo no fundo da memória,
como guardo, num livro, aquela flor
que marca a tua delicada história,
Branca de Neve, meu primeiro amor.

Amei-te… E amei-te, figurinha aluada,
porque nunca exististe e porque sei
que o sonho é tudo — e tudo mais é nada…
E és o primeiro sonho que sonhei.

Hoje ainda beijo, comovido e tonto,
a velha mão que um dia me mostrou
aquela estampa do teu lindo conto,
princesinha encantada de Perrault!

Que fui eu afinal? — Um pobre louco
que andou, na vida, procurando em vão
sua Branca de Neve que era um pouco
do sonho e um pouco de recordação…

Procurei-a. Meus olhos esperaram
vê-la passar com flores e galões,
tal qual passaste quando te levaram,
no ataúde de vidro, os sete anões.

E encontrei a Saudade: ia alva e leve
na urna do passado que, afinal,
é como o teu caixão, Branca de Neve:
é um ataúde todo de cristal.

E parecia morta: mas vivia.
Corado do meu beijo que a roçou,
despertei-a do sono em que dormia,
como o Príncipe Azul te despertou.

Sinto-me agora mais criança ainda
do que naqueles tempos em que li
a tua história mentirosa e linda;
pois quase chego a acreditar em ti.

É que o meu caso (estranha extravagância!)
é a tua história sem tirar nem pôr…
E esta velhice é uma segunda infância,
Branca de Neve, meu primeiro amor.

Guilherme de Almeida (1860-1969)

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Ou Ou

Pixabay (IA)

A moça atrás da vidraça
espia o moço passar.

O moço nem viu a moça,
ele é de outro lugar.
O que a moça quer ouvir
o moço sabe contar:
ah, se ele a visse agora,
bem que havia de parar.
Atrás da vidraça, a moça
deixa o peito suspirar.
O moço passou depressa,
ou a vida vai devagar?

João Guimarães Rosa (1908-1967)

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Fim

Jules Alexandre Grun
As 15 maiores epidemias e pandemias da História Da Antiguidade até os tempos de hoje, as epidemias e pandemias foram tão comuns na história da humanidade quanto as guerras e os conflitos políticos. Os registros mais antigos conhecidos são do século V a.C., de Atenas, por ocasião da Guerra do Peloponeso. Há numerosos casos de epidemias pouco conhecidos, com registros esparsos e superficiais, especialmente sobre as populações colonizadas pelos europeus, como é o caso da América e da África.
  1. A praga de Atenas, 429-326 a.C.
  2. Peste de Antonino, 165-180
  3. Peste de Justiniano, 541-544
  4. Peste Negra, 1346-1353
  5. Epidemia de Cocoliztli, México, 1545-1548 e 1576-1580
  6. Grande Praga de Milão, 1629-1631
  7. A Grande Praga de Londres, 1664-1665
  8. Grande Praga de Marselha, 1720-1722
  9. Pandemia de cólera, século XIX
  10. Gripe Espanhola, 1918
  11. Gripe Asiática (vírus H2N2), 1956
  12. Gripe de Hong Kong (vírus H3N2), 1968-1970
  13. AIDS (HIV), 1981 até hoje
  14. Surto do SARS, 2002-2004
  15. Epidemia de Ebola, 2007 e 2013-2016

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Encontrar o que se perdeu

Edmund Dulac

Encontrar o que se perdeu
dentro da cabeça
antes de usar a mão
para pegá-lo fora dela
e encontrar-se no sentimento
longínquo, quase esquecido
é encontrar os óculos para ver melhor
a hora certa do dia, reaprender
apreender, usufruir de novo
o gosto de saber, guardar
ainda que for para dar ou dividir
porque assim não estará
nem perdido, nem preso, nem à parte.

Armando Freitas Filho

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Ilusões da Vida

Gustav Klimt
Quem passou pela vida em branca nuvem
E em plácido repouso adormeceu,
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu;
Foi espectro de homem, não foi homem,
Só passou pela vida, não viveu.

Francisco Otaviano (1825-1889)


sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Todos talentos de Deus estão dentro de você

Georg Friedrich Kersting

Como poderia ser diferente,
uma vez que sua alma
derivou dos genes Dele!

Eu amo esta expressão:
“Todos os talentos de Deus estão dentro de você.”

Às vezes Hafiz não consegue fazer nada senão aplaudir
Certas palavras que surgem de minhas profundezas
como a fragrância do corpo de uma amante.

Segure este livro perto do seu coração
pois ele contém segredos maravilhosos.

Hafez de Xiraz (1315-1390)
Tradução: Nicolas Voss

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Destino

Eugène Delacroix
“O destino gosta de inventar desenhos e figuras. A dificuldade dele reside no complicado. A vida mesma, porém, é difícil pela simplicidade. Tem apenas algumas coisas de um tamanho que nos não é adequado. O santo, rejeitando o destino, escolhe estas coisas, em face de Deus. Mas que a mulher, conforme à sua natureza, tenha de fazer a mesma escolha em relação ao homem, é o que evoca a fatalidade de todas as relações de amor: resoluta e sem destino como uma eterna, ergue-se ela ao lado dele, dele que se transforma. Sempre a amante ultrapassa o amado, porque a vida é maior do que o destino. O dom de si mesma quer ser desmedido: é esta a sua ventura. A dor inominada do seu amor, porém, foi sempre esta: que se exija dela que limite este dom de si mesma.”
Rainer Maria Rilker (1875-1926)
Tradução: Paulo Quintela

domingo, 13 de setembro de 2015

O Adjetivo

Sally Rosenbaum

O adjetivo? Que horror
quando não é incisivo
quando atira para o vago
o pobre substantivo
ou o circunda de um halo
de um falso resplendor,
em que o ouro utilizado
não é ouro é só dourado!

O sol assim captado
é sol, mas sol de teatro,
ouro em falsete, luz barata,
e no prego não dá nada,

que o prego não acredita
(senão já estava falido)
nesse ouro sem quilate
que usam a valdevina

e o poeta que se orna
(que orneia, melhor diria)
de luzidias mentiras,
de poética poesia.

Disse pouco do que queria
na parte que antecede.
Se é discursiva, a poesia
também não serve...

Voltando ao adjetivo
(nada tenho contra ele):
é melhor ficar despido,
cosido com a própria pele,

do que pedir emprestada
a piedosos enchumaços
aquela largura de ombros
que nos faz ginasticados,

quando, em verdade, não temos
mais ginástica do que essa
em que somos atletas
e que se resume apenas

no aguentar alegre
do peso quotidiano
(pode ser que para o ano
a terra nos seja leve).

Tal como do mal o menos
- e nesta regra redijo-
antes quero sóbrios termos
do que fingir que sou rico...

Alexandre O'Neill (1924-1986)

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

A língua na nossa identidade

Theresa Bernstein – Os Imigrantes
“Por um tempo, assim como tantos outros emigrantes, estive, para todos os efeitos, sem linguagem, e da tristeza daquela condição, compreendi o quanto o âmago da nossa existência, a nossa compreensão de identidade, depende de ter uma língua viva dentro de nós. Perder toda a linguagem interna é sucumbir a uma escuridão inarticulada em que nos tornamos estrangeiros para nós mesmos; perder a habilidade de descrever o mundo é retratá-lo um pouco menos vívido, um pouco menos lúcido. E além, a riqueza na articulação propicia tonalidades de sutileza e nuance às nossas percepções e ao pensamento. Para mim, uma das passagens mais sensíveis na escrita de Nabokov é sua invocação dos sons do russo, ao final de Lolita. Lá ele evoca não só a melodia, a eufonia dos sons do russo, de maneira convincente, mas também a profundidade e a totalidade da existência da língua no nosso ser. É essa relação com a língua, mais do que o domínio superficial dela, que é difícil de duplicar nas línguas que se aprende posteriormente.”
Eva Hoffman

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Duma outra infância, inventada...

Stanhope Alexander Forbes

Duma outra infância, inventada,
Guardo memórias que são
Reais reversos do nada
Que as verdadeiras me dão.

Estas, se acaso regressam,
Em tropel e confusão
Ao limiar-me, tropeçam
No corpo das que lá estão.

Assim, mentindo as raízes
Do meu confuso começo,
Segrego imagens felizes
Com que as funestas esqueço.

Reinaldo Ferreira (1922-1959)

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Minha Família

Tadeusz Makowski

Minha família é disfuncional, completamente. Nunca existiu amor lá. Só ódio, rancor e cobrança.
Meu pai abusou de mim sexualmente a primeira vez que me lembro eu deveria ter 8 a 9 anos. Mas acredito que antes disso deva ter feito outras coisas porque a memória da gente capta apenas alguns fragmentos e isso é estranho. Eu reagi com muito espanto e indignação, mas não obtive apoio familiar, ao contrário minha mãe pegou ódio de mim e ai eu fui abusada com espancamentos, fome, humilhações, abusos psicológicos e tortura. Fui queimada duas vezes com ferro de passar roupa super quente e nem ao médico me levaram . Meu pai ao chegar e ver meu braço e meu choro foi buscar uma pomada e minha mãe nem aí.
Meu irmão que fez isso pela primeira vez o fez antes de ir para a faculdade, ou seja, era adulto e estudado, mas não se arrependeu.
Depois de uns meses uma irmã mais velha fez o mesmo, além dela me cortar o cabelo de maneira totalmente humilhante e por trás, traiçoeiramente, pois ela tem ódio de mim porque eu nasci e tirei o colo do pai dela.
Eu fiquei menstruada com 13 anos e não me compravam Modess. Foi porque eu "roubei" um Modess dela que ela me queimou.
Só fui comprar Modess quando comecei a trabalhar de doméstica de depois na Gessy-Lever.
Eu ia para a escola com uniforme sujo, inclusive de sangue de menstruação, sapato aberto, ou seja, com sola saindo, saia sem barra e com fome, sem almoço. Repeti de ano ai tiraram-me da escola, pois eu não me esforcei para passar de ano.
Ai ficávamos eu e minha mãe em casa e ela aproveitava para me dar surras imensas com cordão de ferro. Dizia quero te matar! Fez isso muitas vezes eu tinha que ficar fora de casa até a hora de dormir até o dia em que a xinguei de todos os nomes possíveis e imagináveis. Ai ela parou. Logo depois comecei a trabalhar e ela ficou doente. Teve câncer e morreu. Isso até meus 23 anos.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Cadernos do Subterrâneo

Toulouse-Lautrec
Oh, se eu não fizesse nada só por preguiça! Meu Deus, que respeito teria por mim. E teria esse respeito, precisamente, porque era capaz, pelo menos, de ter preguiça; haveria em mim, pelo menos, a certeza de uma característica definida. Se perguntassem de mim: quem é? E respondessem: um mandrião — isso ser-me-ia extremamente agradável de ouvir. Quer dizer que tinha uma característica determinada, logo, era possível dizer algo de mim. «Mandrião!» — mas isso é um título, um cargo, uma carreira. Não é brincadeira, é verdade. Nesse caso, seria membro de pleno direito de um clube de primeira e passava a vida a respeitar-me. Conheci um sujeito que toda a vida se orgulhou de ser perito em champanhe Laffite. Considerava isso uma grande qualidade sua e nunca duvidava de si mesmo. Morreu, não só de consciência tranquila, mas de consciência triunfante, e tinha absoluta razão.
Quanto a mim, escolheria uma carreira de mandrião e glutão, mas não de um simples e corriqueiro mandrião e glutão, antes, por exemplo, de adepto de tudo o que é belo e sublime. Que tal, na vossa opinião? Tive esta ideia há muito tempo. Muito esse «belo e sublime» me oprimiu a nuca, chegado aos meus quarenta anos; mas isso foi aos quarenta — se fosse antes, teria sido outra coisa! Teria também achado para mim, com toda a certeza, a minha correspondente actividade, como seja: beber brindando à saúde de tudo o que é belo e sublime. Não deixaria passar qualquer ocasião de verter, primeiro, uma lágrima no copo e, depois, de o emborcar em honra de tudo o que é belo e sublime. Tornar-me-ia lacrimejante como uma esponja embebida. Por exemplo, um artista pintava um quadro de Gay (1). Imediatamente eu brindava à saúde do artista que pintava um quadro de Gay, porque gosto de tudo o que é belo e sublime. Um autor escrevia que «cada um faz o que lhe dá na gana»; de imediato brindo pela saúde de «quem me dá na gana» porque gosto de todo o «belo e sublime».
Exigiria que me respeitassem por isso mesmo, perseguiria quem não me mostrasse respeito. Vivo sossegado, morro solenemente — mas é uma maravilha, uma verdadeira maravilha! E que barriga deixaria crescer, que papo triplo cultivaria, que nariz de sândalo elaboraria; e qualquer um diria olhando para mim: «Este tem pinta! Tem algo de verdadeiramente positivo!» Seja como for, é extremamente simpático ouvir características destas no nosso século negativo, meus senhores.
Fiódor Dostoiévski (1821-1881)
Tradução: Nina Guerra e Filipe Guerra

Nota:(1) Esta frase sarcasticamente invertida refere-se ao pintor russo Nikolai Gay (1831-1894) e ao seu quadro Última Ceia, que Dostóievski achava transmitir uma ideia falsa.

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Dos Olhos do Não

Daniel F. Gerhartz

Se lhes derem Kennedy ou Kruschev ou De Gaulle
não acreditem nesta única realidade
neste implacável colar de conchas de ar

se lhes derem os códigos os gestos as modas
não acreditem nesta enlatada realidade
nesta implacável aranha de invisíveis fios

se lhes derem a esperança o progresso a palavra
não acreditem na imposta realidade
na implacável engrenagem das hélices de vácuo

aprendam a olhar atrás do espelho
onde a história jamais penetra
a profunda história do não registrado
aprendam a procurar debaixo da pedra
a história do sangue evaporado
a história do anônimo desastre
aprendam a perguntar
por quem construiu a cidade
por quem cunhou o dinheiro
por quem mastigou a pólvora do canhão
para que as sílabas das leis fossem cuspidas
sobre as cabeças desses condenados ao silêncio.

Afonso Henriques Neto

sábado, 29 de agosto de 2015

Jesus

Novas evidências reforçam a teoria
de que Jesus era casado.
“Evangelho da Esposa de Jesus”, como o papiro foi nomeado, traz também uma referência a uma discípula chamada Maria.
Novos testes em um controverso fragmento de papiro reforçam as evidências de que Jesus tinha uma esposa. O “Evangelho da Esposa de Jesus”, como foi nomeado, é um excerto, não maior do que um cartão de crédito, contendo um texto cóptico que traria referências de Jesus dizendo as palavras “minha esposa” e também se referindo a uma discípula chamada “Maria”. As informações são do The Independent.
Papiro divulgado em 2012 causou controvérsias por reforçar que Jesus teria sido casado

Estudos feitos no ano passado estipularam que o documento foi originado entre os séculos VI e IX Depois de Cristo (D.C.). Mas Christian Askeland, pesquisador associado do Instituto de Pesquisa Bíblica e Septuaginta de Wuppertal, na Alemanha, acredita que as similaridades entre o evangelho e o papiro contendo o Evangelho de João indicam que ambos são falsos.
Segundo o professor, a datação feita por radiocarbono mostrou que o Evangelho de João foi escrito há 1200 anos e em uma língua extinta há 300, portanto, o documento era falso. De acordo com ele, a chance do Evangelho da Esposa de Jesus ter sido escrito pelo mesmo autor é grande, o que comprovaria que ambos são forjados.
Porém, pesquisadores da Universidade de Columbia estão fazendo novos testes e dizem que os primeiros resultados descartam a teoria de Askeland.
James Yardley, que está trabalhando nas pesquisas, disse à publicação LiveScience que “em nossos primeiros testes, já podemos dizer que as tintas usadas nos dois papiros (no Evangelho da Esposa de Jesus e no Evangelho de João) são bem diferentes. Os resultados recentes confirmam fortemente essa observação”. Yardley afirmou que não daria mais detalhes até que o estudo fosse divulgado.
Apesar das evidências levarem a crer que o evangelho encontrado seja verdadeiro, ainda não há uma resposta de como isso afetaria o cristianismo.
A professora Karen King, especialista da área de teologia de Harvard, que anunciou a descoberta do texto em 2012, disse que enquanto o documento não prova concretamente que Jesus tinha uma esposa, ele pode iniciar um debate sobre os primeiros cristãos e se o “modo ideal” de viver é o celibatário.
Ela também já havia afirmado no ano passado que o “principal tópico” do papiro é se mulheres que eram mães e esposas também podiam ser discípulas. “Esse fragmento do Evangelho nos dá um motivo para reconsiderar o que pensávamos saber sobre o status conjugal de Jesus e as controvérsias que isso gerou na forma que os cristãos encaram o casamento, celibato e família”, afirmou a pesquisadora em 2012, época da descoberta.

Fonte:
( Site Terra )

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

E era o ano de 79

Alfred Elmore - Pompeia
Era o dia do deus romano do fogo
Plínio, o Velho, navegava comandando uma frota romana.
Ao entrar na baía de Nápoles, viu que uma fumaça negra vinha crescendo do vulcão Vesúvio, uma árvore alta que abria sua ramagem na direção do céu, e de repente caiu a noite em pleno dia, o mundo tremeu em violentas sacudidelas e um bombardeio de pedras de fogo sepultou a festeira cidade de Pompeia.
Karl Brullov - A Última Noite de Pompeia
Pouco antes, o fogo havia arrasado a cidade de Lugdunum, e Sêneca havia escrito:
Houve apenas uma noite entre a maior cidade e cidade alguma.
Lugdunum ressuscitou, e agora se chama Lyon. E Pompeia não desapareceu: intacta debaixo das cinzas foi guardada pelo vulcão que a matou.
Eduardo Galeano (1940-2015)
em "Os Filhos dos Dias".