sábado, 25 de janeiro de 2014

Arte de cavalgar no tempo dos Flamengos

Azulejo holandês em Recife

Em seu Valeroso Lucideno e o triumpho da Liberdade (Lisboa, 1648) frei Manuel do Salvador, ou Manuel Calado descreve as festas que o Conde Maurício de Nassau promoveu em Pernambuco para celebrar a Restauração de Portugal em 1640. Houve banquete. Música. O rio encheu-se de batéis e barcas. Armaram-se palanques. Senhoras exibiram jóias finas.
Mas a parte mais interessante das comemorações foi a que hoje chamaríamos esportiva, com duas quadrilhas de cavaleiros a darem demonstrações de perícia na arte então mais nobre e viril que havia: a de cavalgar. Uma quadrilha era de nórdicos: holandeses, ingleses, alemães e franceses. A outra era de portugueses e brasileiros. A primeira tinha por chefe o próprio Nassau. A outra o fidalgo pernambucano Pedro Marinho.
Primeiro os cavaleiros, com suas lanças, desfilaram de dois em dois pelas ruas do Recife: um português (ou brasileiro) e um nórdico. E pela simples maneira de cavalgarem, parece que se tornaram de início evidentes os contrastes entre as duas civilizações – a nórdica e a lusitana – que a astúcia política de Nassau, aproveitando-se da notícia da Restauração de Portugal, conseguiu fazer que ostentassem, numa festa quase fraternal, os seus característicos diferentes. Os de uma civilização já burguesa e os de uma civilização ainda feudal. Donde o reparo do padre ainda cronista – o bom frei Manuel dos Óculos – de que animais cavalgados à bastarda pelos homens do Norte não sabiam senão dar saltos. Os cavaleiros se descompunham ao picar os cavalos. Faltava-lhes a arte dos portugueses de irem sobre os animais “à gineta” e “fechados nas selas”.
Segundo o cronista, foram os cavaleiros portugueses de Pernambuco que atraíram o melhor entusiasmo das damas, embora ortodoxo inflexível, não se esqueça de observar que “nenhumas se poderiam gabar que português algum de Pernambuco se afeiçoasse à mulher das partes do Norte; não digo para casar com ela, mas nem ainda epara tratar amores, ou para alguma desenvoltura; como por contrário o fizeram quase vinte mulheres portuguesas que se casaram com os homens holandeses ou, para melhor dizer, amancebaram, pois se casaram com hereges e por os predicantes hereges porquanto os holandeses as enganaram, dizendo-lhes que eram católicos romanos; e também porque, como eles eram senhores da terra, faziam as coisas como lhes parecia, e era mais honroso e proveitoso; e se os pais das mulheres se queixavam, não eram ouvidos, antes os ameaçavam com falsos testemunhos e castigos”. Observação que lança alguma luz sobre os casamentos entre católicos e acatólicos que então se realizaram no Brasil, a despeito do clamor dos padres e da Igreja contra eles.
Ao desfile dos cavaleiros, seguiram-se as carreiras em torno das argolinhas e depois o jogo de “aptos à mão”. E a ser exata a notícia que dá dos festejos o padre-cronista, as vitórias foram quase todas dos portugueses de Pernambuco, sempre muito “compostos e airosos” nos seus cavalos e capazes das façanhas mais espantosas como a de, no meio da carreira, passar-se um cavaleiro ao cavalo do outro, nas ancas. O que padre não estranha, pois, que, em Pernambuco, havia então, segundo ele, muitos e mui bons homens de cavalos.
As damas estrangeiras é que ficaram maravilhadas com tais façanhas dos homens de Pernambuco. Frei Manuel informa que houve “inglesas e francesas” que tiraram os anéis dos dedos e os mandaram oferecer aos cavaleiros de Pedro Marinho, “só por os ver correr”. No dia seguinte houve banquete aos cavaleiros, e ceias até de madrugada, com a presença de tais damas “Holandesas, Francesas, Inglesas” e muita abundância de bebidas. Banquetes em que as mulheres bebiam “melhor que os homens”, arrimando-se a bordões, como era costume em suas terras.
Os festejos promovidos pelo conde de Nassau em Recife, em abril de 1641, parecem ter tornado claros dois contrastes: o contraste entre os cavalos adestrados e cavalgados por homens de uma civilização ainda feudal e os adestrados e cavalgados por homens de civilizações já burguesas e o contraste entre as mulheres daquela civilização não só feudal como católica e não só católica como ainda um tanto mourisca, e as mulheres das civilizações protestantes ou neo-católicas do norte da Europa. Dentro destas civilizações protestantes já havia, no século XVII, damas de tal modo desembaraçadas dos pudores católicos e dos recatos mouriscos, que bebiam melhor que os homens nos banquetes, participavam de suas festas e enviavam ostensivamente presentes a cavaleiros cujas façanhas na arte de cavalgar mais admiravam. Estes é que esquivavam-se ao casamento com mulheres dos países reformados do norte, menos, talvez, por preconceito de ordem rigorosamente doutrinária ou teológica do que moral ou social.
Homens habituados a mulheres doces e passivas, parece que os modos desembaraçados das inglesas, das holandesas, das francesas e das alemãs não os atraíam as mesmas mulheres senão para namoros efêmeros: nunca para o casamento ou o amor conjugal.
O mesmo não sucedeu com as mulheres da terra com os hereges. Foram várias as que aceitaram hereges para esposos. É que das mulheres da terra, algumas parecem ter descoberto ou adivinhado nos mesmos hereges cavalheiros menos airosos que os portugueses ou brasileiros – senhores quase feudais –porém homens menos tirâ;nicos no seu trato com o belo sexo no qual a civilização burguesa-protestante fazia-os ver pessoas quase iguais as deles homens. Daí casos como da bela viúva D. Ana Pais, que se casou ou uniu com mais de um holandês, escandalizando a sociedade patriarcal, católica e quase feudal que era o Pernambuco de sua época.
Fonte:
Diário de Pernambuco - 4/7/1948
Autor: Gilberto Freyre (1900-1987)

Nenhum comentário: