quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Chacina de Quintino, uma história reescrita 41 anos depois

Era 29 de março de 1972 quando quatro militantes da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), a mesma organização a que pertenceu a presidente Dilma Rousseff, estavam reunidos na casa de número 72 da Avenida Suburbana 8.985, em Quintino, na Zona Norte do Rio. Segundo a versão oficial que consta no registro da Delegacia de Ordem Política e Social (Dops), agentes da área de Segurança Nacional foram recebidos à bala ao penetrar no aparelho subversivo e, em legítima defesa, revidaram. De acordo com o documento, jaziam nos fundos da casa os corpos de duas mulheres e um homem. Quarenta e um anos depois, a versão dos militares para a Chacina de Quintino, como ficou conhecido o episódio, cai por terra.
Com base em documentos de várias fontes e depoimentos de vizinhos e do perito que examinou os corpos no Instituto Médico Legal (IML), a Comissão Estadual da Verdade do Rio (CEV-Rio) elucidou as circunstâncias em que ocorreram as mortes de Antônio Marcos Pinto de Oliveira, Maria Regina Lobo Leite de Figueiredo e Lígia Maria Salgado Nóbrega.
Novos testemunhos obtidos pela comissão, somados ao laudo cadavérico que não aponta resquícios de pólvora na mão dos militantes, levam à conclusão de que as vítimas não receberam os policiais à bala, ao contrário do que sustentaram o Dops e o DOI-Codi.
Em depoimento à comissão, vizinhos que moravam à época na vila onde fica a casa, e que ainda vivem no local, afirmam que não escutaram tiros partindo de dentro da casa. Eles revelaram que a polícia já estava por ali desde o final da tarde daquele trágico dia.
— Foi tudo bem caladinho. Mas eles (os agentes) chegaram aqui na janela mandando a gente se proteger e ficar debaixo da cama. (...). De dez para onze horas da noite. Na hora em que eles foram fazer a execução, foi que eles pediram que nós ficássemos em casa, porque eles (as vítimas) podiam ter munição também e atirar, mas era muita gente, eles não podiam — contou à comissão Orlando de Brito, de 78 anos.
James Allen, companheiro de Lígia e líder da VAR-Palmares naquele momento, conseguiu fugir pulando o muro dos fundos da casa, rumo à linha de trem. Em algumas fontes, Wilton Ferreira aparece como uma quarta vítima da chacina, o que a comissão conseguiu provar se tratar de uma confusão.

Lígia foi “morta” outras duas vezes
Outra vizinha, Heloísa Helena de Almeida, de 69 anos, afirmou que os tiros não partiam de dentro da casa:
— O tiroteio comeu, o tiroteio comeu. A polícia que atirava. Quando eles (as vítimas) viram que o negócio estava assim, tentaram entrar na casa 70 lá por trás, que tinha muito caminho, e eles queriam fugir por trás, por essa rua. E a polícia metralhou.
Em seu relato, Heloísa se refere a Lígia como a moça bonita que se fantasiava de feia. Diz que ela se rendeu, mas foi morta. Lígia estava grávida de dois meses, um filho de James. Os depoimentos dão conta de que a militante morreu na lateral do imóvel, ao ser atingida pelos primeiros tiros. Ela recebeu os policiais com as mãos para o alto e foi baleada na cabeça.
A militante, aliás, morreu outras duas vezes para os militares — e em dias consecutivos. Segundo registros do Dops sobre dois assaltos diferentes, ocorridos nos dias 8 e 9 de junho de 1972, Lígia foi assassinada nas duas ocasiões pelos mesmos motivos: ao reagir à voz de prisão das autoridades da repressão.
E os elementos que levam a conclusões não param por aí. Também em depoimento à CEV-Rio, o médico-legista Valdecir Tagliari, responsável por assinar o óbito das vítimas, relatou como encontrou os corpos.
— Era como se tivessem sofrido golpes de coronha de fuzil. Era armamento pesado, porque houve esmagamento total das mãos e de parte dos braços — lembra, afirmando que o laudo que enviou à direção, como de costume, foi totalmente modificado, segundo ele viu num microfilme anos mais tarde.
No processo que o Grupo Tortura Nunca Mais moveu, no Conselho Regional de Medicina do Rio (Cremerj), contra o perito por conta da chacina, e no qual ele foi absolvido, constam afirmações de Tagliari sobre os laudos.
“(O perito) Refere ter lembrança nítida das lesões cervicais e peitorais, que correspondem a sinais típicos de ‘estrangulamento’ ou ‘tentativa’, além de corte profundo em punho esquerdo”, diz o trecho do processo sobre declarações de Tagliari em relação ao laudo de Antônio Marcos.
Ele nega ser de sua autoria o documento e diz que “não consta a sua assinatura no final do laudo”. Membro da CEV-Rio responsável pelo caso, João Ricardo Dornelles ressalta que ninguém dá coronhada em uma pessoa que já está morta. Além disso, o laudo cadavérico de Maria Regina mostra que o corpo apresentava livores violáceos, ou seja, hematomas, um indicativo de que houve tortura.
— Os depoimentos dos vizinhos e do perito são importantes porque, além disso, o laudo cadavérico mostra que havia hematomas no corpo. São provas reais de que houve espancamento — afirmou Dornelles.

Divergência nos horários

Num primeiro momento, pensou-se que o corpo de Antônio Marcos seria o de James Allen, que era quem os militares queriam capturar por comandar ações no grupo guerrilheiro. Outros documentos da época mostram que o corpo de Antônio Marcos foi reconhecido como sendo Nelson Rodrigues Filho (filho do dramaturgo homônimo), o Prancha, do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), pelo próprio irmão de Nelson, Jofre Rodrigues, que chegou a chorar copiosamente ao lado do cadáver. Depois verificou-se tratar de um engano. Segundo a comissão, a partir da Chacina de Quintino, o Serviço Nacional de Informações (SNI) mudou o método para reconhecimento de corpos, passando a exigir exames das impressões digitais e arcada dentária.
Existia ainda uma divergência sobre o possível horário dos disparos e dia das mortes. Isso porque, em identificação no IML, a data de falecimento aparecia como sendo o dia 30 de março. No documento oficial, consta que o DOI-Codi fez a comunicação do episódio ao Dops à 0h20m. Mas a certidão de óbito mostra que as mortes ocorreram no dia 29. Sobre o horário do tiroteio, os vizinhos contam que o episódio aconteceu por volta das 21h do dia 29.
A pesquisa se debruçou ainda sobre a afirmação de que Wilton Ferreira seria mais uma vítima da Chacina de Quintino, conforme fontes atuais de pesquisa, como a publicação “Direito à Memória e à Verdade”, da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos.
No livro de diligências do Dops, em que os agentes passavam informações do que tinha ocorrido para os que iam trabalhar no turno posterior, há um comunicado posterior ao de Quintino, exatamente às 4h. Esse documento informa que o estouro de um aparelho na Rua Silva Vale, número 55, no bairro de Cavalcante, foi feito pela mesma equipe de Quintino, que fica a cerca de dez minutos de distância. Lá estava Wilton, que foi morto e transferido para o IML junto com as vítimas da chacina, o que gerou a confusão de que ele seria um quarto militante abatido pelas forças de repressão na casa de Quintino.
— Eles forjavam mortes em confronto, mas, na verdade, tratava-se de execuções sumárias, como hoje existem os autos de resistência. Naquela época, era morte em confronto. A Chacina de Quintino também serve para mostrar isso, como a mentira não era só um instrumento ideológico. A mentira, no estado ditatorial, serve pra acobertar crimes e era o que a ditadura fazia — declarou o presidente da CEV-Rio, Wadih Damous.

Conclusões apresentadas na comissão:

Pesquisas documentais e depoimentos concluídos, a comissão localizou uma testemunha-chave para elucidar a morte de Wilton. Hélio da Silva, também militante da VAR-Palmares, esclareceu que Wilton não era militante. Ele foi cooptado por James Allen da Luz para tomar conta da garagem em Cavalcante onde eram guardados os carros roubados da organização.
— (Ele) Não tinha profissão, fazia bico. Ele não era do movimento, não era de facção nenhuma, era só um cara em que o Ciro (codinome de James) confiou e levou para o aparelho de Cavalcante. Na garagem que o Ciro mandou fazer para botar os carros roubados. A função dele era só ser confidente e beber, não tinha compromisso político nem nada — disse Hélio à CEV-Rio.
Hélio, sob a fachada de motorista de táxi, fazia a ligação entre a organização e outros grupos, como o MR-8, a Aliança Libertadora Nacional (ALN) e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). O carro em que ele estava para ir ao encontro de James Allen da Luz foi interceptado pelos agentes da repressão na Avenida Brasil. Ele foi preso naquela manhã do dia da chacina e foi levado para o Batalhão da Polícia Militar no Méier, na Zona Norte, e posteriormente para o DOI-Codi, onde foi torturado e "desaparecido" (morto) em 1973.
James Allen da Luz, percebendo que o colega não aparecia no local marcado no horário estipulado, e nem no ponto de segurança (segundo local marcado para o caso de não se aparecer no primeiro por conta de algum atraso), fez uma reunião na casa em que morava com Lígia, em Quintino. Antônio Marcos e Maria Regina foram para lá. Indagado pela comissão sobre se foi o responsável pela queda do aparelho de Quintino, Hélio negou e explicou que, para se ver livre da tortura e proteger o aparelho de Quintino, preferiu entregar a garagem de Cavalcante, imaginando que ela poderia estar vazia.
Segundo a comissão, a documentação recolhida e os depoimentos dados permitem supor que os tiros da Chacina de Quintino foram dados com os militantes em estado de agonia ou depois da morte na tortura. Único a conseguir escapar, James morreu em um acidente de carro no Rio Grande do Sul em circunstâncias e data não esclarecidas. No laudo, a causa da morte é infarto.

Fonte:
Jornal O Globo: ( Chacina de Quintino )

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