domingo, 19 de junho de 2011

Bacuri

∗ Bacuri – Um Guerrilheiro Brasileiro ∗
Eduardo Collen Leite, nasceu em 28 de agosto de 1945, em Campo Belo, Minas Gerais. Nascera no ano em que as nações encerraram a Segunda Guerra Mundial, e que uma paz aparente pairava sobre o planeta. No Brasil, a ditadura do Estado Novo chegava ao fim. Por um curto espaço de tempo, o país viveria uma democracia a engatinhar. Com a promulgação da Constituinte de 1946, couberam na nova história da nação até os que eram considerados velhos inimigos da elite, os comunistas, que obtiveram a legalização do PCB. Eduardo Leite cresceria nesse prelúdio democrático, que aos poucos foi minguando, ameaçado por golpes sucessivos.
Se a tragédia da grande guerra passara, as nações desenhavam uma outra, a Guerra Fria, que dividiu o mundo entre duas ideologias: a capitalista, liderada pelos Estados Unidos e pela Europa Ocidental, e a socialista, liderada pela extinta União Soviética e a Europa do leste. As novas tendências no quadro político mundial obrigaram que as nações escolhessem o lado que iriam ficar. O Brasil ficou do lado dos norte-americanos, e em 1947, o PCB teve a legenda cassada, passando a vigorar na clandestinidade. Era o primeiro golpe à democracia instituída em 1946.
Eduardo Leite mudou com a família para São Paulo ainda criança. Viveu na adolescência o efervescer das ideologias. Nunca no Brasil a mobilização política voltou a ser tão organizada, como naquele período que antecedeu ao golpe de 1964. As ligas camponesas, os sindicatos, as entidades estudantis, todos, sob a benção das ideologias de esquerda, ocupavam espaço na política do país, incomodando e assustando as elites do poder.
No cenário internacional, a Revolução Cubana de 1959 dava um basta às oligarquias corruptas do seu país, acenando para o resto da América Latina, inspirando aos que sonhavam com a revolução proletária. O medo de que o Brasil viesse a ser uma nova Cuba, deixou a elite direitista em alerta. As reformas agrárias e sociais propostas pelo governo João Goulart foram determinantes para que a direita temesse a implantação de um governo sindicalista e de esquerda. O velho fantasma do comunismo foi usado como propaganda contra a esquerda, e serviu para aliciar o apoio da classe média e setores da população ao golpe militar. A década de 1960 foi a década da quebra dos tabus, das revoluções sociais a explodirem pelo mundo. Das ideologias de esquerda a se fragmentarem em várias linhas intelectuais e dogmáticas. O maoísmo chinês; o castrismo; a visão romântica da revolução de Che Guevara, de fazer da América Latina uma só voz socialista; os trotskistas; os stalinistas; os reformistas liderados pelos soviéticos. Um cenário em princípio caótico para a atualidade contemporânea, mas que influenciaria uma geração pensante e preste a quebrar todos os tabus moralistas até então impostos à cultura ocidental
A juventude à qual Eduardo Leite pertenceu, assistiu a todas as tendências. Vivera uma ínfima democracia, única até então na história da República, a ser encerrada pelos tanques e fuzis militares, naquele horrível 1 de abril de 1964. Era tarde demais para aqueles jovens, acostumados ao debate político, à liberdade que em quinze anos marcara, ainda que de forma imperceptível, uma concepção diferente do Brasil e do mundo.
Muito cedo, Eduardo Leite ingressou na militância política. Tinha dezoito anos quando o golpe militar foi instaurado. Como a maior parte da juventude do seu tempo, acreditava que a esquerda traria a solução para os problemas do mundo, e que o mundo velho e de velhos, teria que ruir em nome de uma revolução socialista. Repudiava a ditadura das elites, economicamente voltada para poucos, acreditava na ditadura do proletariado, extensiva para todos. Assim, integrou-se à Polop (Política Operária), entidade de esquerda.
Como bom cidadão do regime militar, em 1967 foi incorporado ao exército, servindo na 7ª Companhia de Guarda, e, no Hospital do Exército, no bairro do Cambuci, região central de São Paulo. Na época em que frequentou o exército, a grande ala da esquerda dos oficiais de menores patentes, tradicionalmente históricas no Brasil, tinha sido completamente expurgada.
O erro de avaliação do Partido Comunista Brasileiro quanto ao perigo de um golpe militar e, a falta de mobilização quando da sua concretização; a posição reformista e conciliatória com a burguesia; a luta pelo poder interno do comitê central, tudo contribuiu para que se fragmentasse em várias organizações.
Em 1968, Eduardo Leite passou a integrar a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), uma organização política armada de extrema esquerda. Mostrou-se um militante arrojado e destemido, que se iria notabilizar pela eficiência em executar as mais difíceis tarefas das guerrilhas urbanas.
Sem as esperanças que haviam florescido em 1968 e encerradas com o AI-5, a esquerda decidira que a única solução era a luta armada, só ela atrairia as grandes massas, derrubaria a ditadura e consolidaria a revolução proletária. As diferenças de opinião quanto à estratégia da guerrilha; a dificuldade de reunir os militantes em grandes aparelhos, devido à vigilância intensa dos órgãos repressores; a carência de verba para manter os companheiros; fez com que surgissem várias organizações da extrema esquerda.
O ano de 1969 despontou como uma ressaca do AI-5. Seria um dos anos mais violentos tanto para a ditadura, quanto para as organizações de esquerda. Em abril, Bacuri deixou a VPR para fundar a Resistência Democrática (REDE). Destacou-se rapidamente nas empreitadas da guerrilha urbana. Praticou dezenas de assaltos a bancos, supermercados e carros fortes, sem nunca se deixar apanhar. Sua reputação de perigoso subversivo logo se espalhou. Ainda naquele fatídico 1969, seu rosto aparecia estampado, ao lado de Carlos Marighella, nos cartazes de “Procurados” espalhados pelo país. Bacuri tornara-se uma lenda, um nome que incomodava os agentes da repressão.
Ao vestir a roupa do guerrilheiro Bacuri, Eduardo Leite escolheu para si uma vida mergulhada na violência. Em momento algum duvidou da ideologia pela qual ele e grande parte da sua geração lutaram, renunciando a si mesmo. Os que sobreviveram àqueles tempos, assistiram ao fim da ideologia. Bacuri congelou a sua vida no tempo, não desmoronou com o ruir dos ideais, não sentiu que perder a vida em nome de uma causa não lhe foi inútil.
Dos nomes que a guerrilha urbana consagrou, Bacuri foi o retrato fiel do guerrilheiro brasileiro. Enquanto Carlos Marighella é o mentor, idealizador e intelectual da guerrilha; e, Carlos Lamarca o comandante que atraiu para si a admiração romântica da guerrilha; Bacuri é o guerrilheiro, o executor da guerrilha. Seu vigor, sua coragem e obstinação, fizeram com que ele matasse sem remorsos quando preciso. Assim como Marighella e Lamarca, estava condenado a não sobreviver ao seu tempo. A violência dos assaltos por ele praticado privou vários companheiros da fome e da miséria estabelecidas pela clandestinidade; com os sequestros salvou a vida de muitos companheiros. Para Bacuri não houve tempo de analisar ou combater o ideal revolucionário, não houve tempo para avaliação ou uma autocrítica histórica do mundo ao qual se lançara. A autocrítica ficou para os que sobreviveram às torturas e à queda da guerra fria.
Descritos como terroristas pela ditadura militar, os guerrilheiros ainda hoje causam polêmicas e controversas. No decorrer das décadas, muitos ex-guerrilheiros tiveram a sua imagem transformada e redimida diante da nação, que muitas vezes os temia, sem perceber a essência da causa. Muitos chegaram ao poder, como José Genuíno, Franklin Martins e Fernando Gabeira. Outros entraram para a história como o guerrilheiro romântico, caso do capitão Lamarca. Carlos Marighella, até pouco tempo considerado maldito, vem sendo revisado pela história. Falta Eduardo Leite, o Bacuri, perder o estigma de maldito. Ceifou vidas quando em combate corporal, mas jamais torturou e supliciou os que se lhe puseram na frente. Quem foi mais selvagem, ele que matou à queima roupa, ou os homens que o torturam brutalmente até matá-lo 109 dias depois? Lampião, um assassino da caatinga, aclamado o rei do cangaço, herói do sertão, matou sem piedade ou ideologia. Os mortos de Bacuri é um quase nada diante dos de Lampião. Cangaceiro e guerrilheiro, porque se redime um e execra-se o outro?
Eduardo Collen Leite foi morto aos 25 anos, no esplendor da sua juventude. A mulher, Denise Crispim, exilou-se logo após a sua morte. Deixou uma filha, Eduarda, nascida no exílio, jamais a conheceu. Não se tornou um mártir da história nacional, mas um mártir da guerrilha, do seu tempo e dos seus ideais.

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