quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Reflexão:

Bryce Cameron Liston
“Se pudéssemos ter não só a visão, mas o sentimento profundo da vida humana, seria como ouvir a grama crescer e o coração do esquilo pulsar, e morreríamos do estrondo que jaz do outro lado do silêncio”.
George Eliot (1819-1880)

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

A que há de vir

Lanie Loreth
Aquela que dormirá comigo todas as luas
É a desejada de minha alma.
Ela me dará o amor do seu coração
E me dará o amor da sua carne.
Ela abandonará pai, mãe, filho, esposo
E virá a mim com os peitos e virá a mim com os lábios
Ela é a querida da minha alma
Que me fará longos carinhos nos olhos
Que me beijará longos beijos nos ouvidos
Que rirá no meu pranto e rirá no meu riso.
Ela só verá minhas alegrias e minhas tristezas
Temerá minha cólera e se aninhará no meu sossego
Ela abandonará filho e esposo
Abandonará o mundo e o prazer do mundo
Abandonará Deus e a Igreja de Deus
E virá a mim me olhando de olhos claros
Se oferecendo à minha posse
Rasgando o véu da nudez sem falso pudor
Cheia de uma pureza luminosa.
Ela é a amada sempre nova do meu coração
Ela ficará me olhando calada
Que ela só crerá em mim
Far-me-á a razão suprema das coisas.
Ela é a amada da minha alma triste
É a que dará o peito casto
Onde os meus lábios pousados viverão a vida do seu coração
Ela é a minha poesia e a minha mocidade
É a mulher que se guardou para o amado de sua alma
Que ela sentia vir porque ia ser dela e ela dele.
Ela é o amor vivendo de si mesmo.
É a que dormirá comigo todas as luas
E a quem eu protegerei contra os males do mundo.
Ela é a anunciada da minha poesia
Que eu sinto vindo a mim com os lábios e com os peitos
E que será minha, só minha, como a força é do forte e a poesia é do poeta.

Vinícius de Moraes (1913-1980)

sábado, 25 de janeiro de 2014

Arte de cavalgar no tempo dos Flamengos

Azulejo holandês em Recife

Em seu Valeroso Lucideno e o triumpho da Liberdade (Lisboa, 1648) frei Manuel do Salvador, ou Manuel Calado descreve as festas que o Conde Maurício de Nassau promoveu em Pernambuco para celebrar a Restauração de Portugal em 1640. Houve banquete. Música. O rio encheu-se de batéis e barcas. Armaram-se palanques. Senhoras exibiram jóias finas.
Mas a parte mais interessante das comemorações foi a que hoje chamaríamos esportiva, com duas quadrilhas de cavaleiros a darem demonstrações de perícia na arte então mais nobre e viril que havia: a de cavalgar. Uma quadrilha era de nórdicos: holandeses, ingleses, alemães e franceses. A outra era de portugueses e brasileiros. A primeira tinha por chefe o próprio Nassau. A outra o fidalgo pernambucano Pedro Marinho.
Primeiro os cavaleiros, com suas lanças, desfilaram de dois em dois pelas ruas do Recife: um português (ou brasileiro) e um nórdico. E pela simples maneira de cavalgarem, parece que se tornaram de início evidentes os contrastes entre as duas civilizações – a nórdica e a lusitana – que a astúcia política de Nassau, aproveitando-se da notícia da Restauração de Portugal, conseguiu fazer que ostentassem, numa festa quase fraternal, os seus característicos diferentes. Os de uma civilização já burguesa e os de uma civilização ainda feudal. Donde o reparo do padre ainda cronista – o bom frei Manuel dos Óculos – de que animais cavalgados à bastarda pelos homens do Norte não sabiam senão dar saltos. Os cavaleiros se descompunham ao picar os cavalos. Faltava-lhes a arte dos portugueses de irem sobre os animais “à gineta” e “fechados nas selas”.
Segundo o cronista, foram os cavaleiros portugueses de Pernambuco que atraíram o melhor entusiasmo das damas, embora ortodoxo inflexível, não se esqueça de observar que “nenhumas se poderiam gabar que português algum de Pernambuco se afeiçoasse à mulher das partes do Norte; não digo para casar com ela, mas nem ainda epara tratar amores, ou para alguma desenvoltura; como por contrário o fizeram quase vinte mulheres portuguesas que se casaram com os homens holandeses ou, para melhor dizer, amancebaram, pois se casaram com hereges e por os predicantes hereges porquanto os holandeses as enganaram, dizendo-lhes que eram católicos romanos; e também porque, como eles eram senhores da terra, faziam as coisas como lhes parecia, e era mais honroso e proveitoso; e se os pais das mulheres se queixavam, não eram ouvidos, antes os ameaçavam com falsos testemunhos e castigos”. Observação que lança alguma luz sobre os casamentos entre católicos e acatólicos que então se realizaram no Brasil, a despeito do clamor dos padres e da Igreja contra eles.
Ao desfile dos cavaleiros, seguiram-se as carreiras em torno das argolinhas e depois o jogo de “aptos à mão”. E a ser exata a notícia que dá dos festejos o padre-cronista, as vitórias foram quase todas dos portugueses de Pernambuco, sempre muito “compostos e airosos” nos seus cavalos e capazes das façanhas mais espantosas como a de, no meio da carreira, passar-se um cavaleiro ao cavalo do outro, nas ancas. O que padre não estranha, pois, que, em Pernambuco, havia então, segundo ele, muitos e mui bons homens de cavalos.
As damas estrangeiras é que ficaram maravilhadas com tais façanhas dos homens de Pernambuco. Frei Manuel informa que houve “inglesas e francesas” que tiraram os anéis dos dedos e os mandaram oferecer aos cavaleiros de Pedro Marinho, “só por os ver correr”. No dia seguinte houve banquete aos cavaleiros, e ceias até de madrugada, com a presença de tais damas “Holandesas, Francesas, Inglesas” e muita abundância de bebidas. Banquetes em que as mulheres bebiam “melhor que os homens”, arrimando-se a bordões, como era costume em suas terras.
Os festejos promovidos pelo conde de Nassau em Recife, em abril de 1641, parecem ter tornado claros dois contrastes: o contraste entre os cavalos adestrados e cavalgados por homens de uma civilização ainda feudal e os adestrados e cavalgados por homens de civilizações já burguesas e o contraste entre as mulheres daquela civilização não só feudal como católica e não só católica como ainda um tanto mourisca, e as mulheres das civilizações protestantes ou neo-católicas do norte da Europa. Dentro destas civilizações protestantes já havia, no século XVII, damas de tal modo desembaraçadas dos pudores católicos e dos recatos mouriscos, que bebiam melhor que os homens nos banquetes, participavam de suas festas e enviavam ostensivamente presentes a cavaleiros cujas façanhas na arte de cavalgar mais admiravam. Estes é que esquivavam-se ao casamento com mulheres dos países reformados do norte, menos, talvez, por preconceito de ordem rigorosamente doutrinária ou teológica do que moral ou social.
Homens habituados a mulheres doces e passivas, parece que os modos desembaraçados das inglesas, das holandesas, das francesas e das alemãs não os atraíam as mesmas mulheres senão para namoros efêmeros: nunca para o casamento ou o amor conjugal.
O mesmo não sucedeu com as mulheres da terra com os hereges. Foram várias as que aceitaram hereges para esposos. É que das mulheres da terra, algumas parecem ter descoberto ou adivinhado nos mesmos hereges cavalheiros menos airosos que os portugueses ou brasileiros – senhores quase feudais –porém homens menos tirâ;nicos no seu trato com o belo sexo no qual a civilização burguesa-protestante fazia-os ver pessoas quase iguais as deles homens. Daí casos como da bela viúva D. Ana Pais, que se casou ou uniu com mais de um holandês, escandalizando a sociedade patriarcal, católica e quase feudal que era o Pernambuco de sua época.
Fonte:
Diário de Pernambuco - 4/7/1948
Autor: Gilberto Freyre (1900-1987)

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Noite Torta

Paul Cézanne
Na sala numa fruteira
A natureza está morta
Laranjas, maçãs e peras
Bananas, figos de cera
Decoram a noite torta

Sob a janela do quarto
A cama dorme vazia
Encaro nosso retrato
Sorrindo sobre o criado
No meio da noite fria

Está pingando o chuveiro
Que banho mais apressado
Molhado caíste fora
No espelho minha alma chora

Lá fora está tão gelado
Sozinha nesta cozinha
Em pé eu tomo um café
Na pia a louça suja
Me lembra da roupa suja
No tanque que a vida é.

Itamar Assumpção (1949-2003)

domingo, 19 de janeiro de 2014

Felicidade Familiar

Oksana Kravchenko
“A felicidade familiar é como uma planta que cresce todo dia, todo ano, com novos ramos mas também folhas que caem, ramos que quebram, galhos que apodrecem, frutos sadios e frutos bichados, sendo os frutos os dias ou momentos, as folhas sendo as horas, cada uma diferente da outra como são diferentes os minutos”.
Domingos Pellegrini

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

O Presente - Cecelia Ahern

Todos os dias, Lou Suffern luta contra o tempo. Ele tem sempre dois lugares para ir, tem sempre duas coisas a fazer. Quando dorme, sonha com os planos do dia seguinte, e, quando está em casa, com a esposa e os filhos, sua mente está, invariavelmente, em outro lugar. Numa manhã de inverno, Lou encontra Gabe, um morador de rua, sentado no chão, sob o frio e a neve, do lado de fora do imenso edifício onde Suffern trabalha. Os dois começam a conversar, e Lou fica muito intrigado com as informações que recebe de Gabe; informações de alguém que tem observado uniões improváveis entre os colegas de trabalho de Lou, como os encontros da moça de sapatos Loubotin com o rapaz de sapatos pretos... Ansioso por saber de tudo e por manter o controle sobre tudo, Lou entende que seria bom ter Gabe por perto — para ajudá-lo a desmascarar associações que se formam fora de suas vistas — e lhe oferece um emprego. Mas logo o executivo arrepende-se de ajudar Gabe: sua presença o perturba. O ex-mendigo parece estar em dois lugares ao mesmo tempo, e, além disso, Gabe lhe fala umas coisas muito incomuns, como se soubesse do que não deveria saber... Quando começa a entender quem é realmente Gabe, e o que ele faz em sua vida, o executivo percebe que passará pela mais dura das provações. Esta história é sobre uma pessoa que descobre quem é. Sobre uma pessoa cujo interior é revelado a todos que a estimam. E todos são revelados a ela. No momento certo.
Lou é daquele tipo de homem sempre muito ocupado, que só pensa em trabalho, que vive em função de cumprir seu horário em reuniões e fechar grandes negócios.
As coisas pioram quando um cargo muito importante em sua empresa fica vago, e todos desejam ocupa-lo. Afinal, nada mais é, que o cargo do segundo maior manda chuva da empresa, o homem número 2 do lugar.
Assim, Lou que já é obcecado pelo trabalho, esquece todo e qualquer limite e se lança na tarefa de ser o escolhido para o cargo de ouro. Ele se empenha em ser sempre o primeiro a chegar e o último a sair da empresa, em ser o melhor e mais destacado em tudo. Todos os que estão a sua volta o admiram ou invejam.
Com todo esse empenho e dedicação desmedidos, Lou não só se afasta de sua família (Pai, mãe e irmãos), como também se torna ainda mais ausente e distante de sua esposa e filhos. Isso sem contar as diversas traições durante os longos expedientes de trabalho.
Mas a vida de Lou passa por um divisor de águas no momento em que ele conhece Gabe, e por milagre decide emprega-lo. Gabe era um morador de rua que vivia na calçada do lado de fora do prédio onde Lou trabalhava.
Porém, Gabe não parece ser um simples mendigo, e quando Lou se dá conta disso começa a se sentir incomodado e até ameaçado pela presença de Gabe.
Gabe fala e sabe coisas que não deveria, conhece assuntos que ninguém mais deveria conhecer, sabe detalhes que seria impossível a qualquer ser humano comum saber. E todos esses pequenos detalhes começam a incomodar e muito a Lou.
Ao longo das páginas vamos compreendendo a real missão de Gabe na vida de Lou, e compreendemos quem na verdade está ajudando quem.
Lou é o tipo de cara tão obcecado com o sucesso no trabalho que não enxerga as demais coisas bem debaixo do nariz dele. Não percebe o quanto magoa a todos que o amam, o quanto abandonou seus lindos filhos e sua esposa maravilhosa.
As diversas “dicas” que ele recebe ao longo da historia, os diversos “cutucões” e ele não acorda. Teve horas em que senti vontade de gritar com ele, e adorei muitos dos diversos choques de realidade que Gabe dava nele.
Com muito sacrifício e muito sofrimento causado, Lou começa a despertar e mudar de atitude, e começa a querer voltar a ser parte da família a qual pertence.
Mas será que vai ser assim tão fácil, será que ele já não desperdiçou todas as suas chances, será que ele ainda tem tempo pra voltar atrás e mudar? A vida de Lou está prestes a passar por um novo divisor de águas e esse será definitivo, será sua última chance de fazer tudo certo.
O Presente é realmente um lindo presente, nos passa uma mensagem muito importante.
É uma linda história, sobre um homem que esqueceu o que realmente nos é importante nessa vida, as coisas que são realmente valiosas, um homem que trocou tudo de mais lindo que tinha por ambição. E aprendeu da maneira mais difícil e dolorosa, que o tempo não para pra que consertemos os nossos erros.
É uma leitura mais do que recomendada. É aquele tipo de leitura que nos marca, inesquecível!

A Autora
Cecelia Ahern (Dublin, Irlanda, 30 de setembro de 1981) é uma escritora irlandesa. Cecelia, que vive em Dublin, alcançou grande sucesso com seus cinco romances já publicados, além de ter vários contos incluídos em antologia. Antes de engrenar na carreira de escritora, Cecelia Ahern se formou em Jornalismo e Comunicação. Aos 21 anos, escreveu seu primeiro romance, P.S. Eu te amo, que se tornou um best-seller internacional e foi adaptado para o cinema. Seus outros romances — A Vez da Minha Vida, Onde Terminam os Arco-íris, Aqui é o Melhor Lugar, Se Você Me Visse Agora e As Suas Lembranças São Minhas — foram todos best-sellers Cecelia foi uma das criadoras da série de TV Samantha Who?, que ganhou um Emmy. Seus livros foram publicados em 46 países. Foram vendidas mais de 20 milhões de cópias no mundo todo. A autora mora em Dublin (Irlanda) com sua família.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Tenho Pena dos Astrônomos

Jan Vermeer
Eles podem ver os objetos de sua afeição estrelas, galáxias, quasares - apenas remotamente: na forma de imagens e telas de computador ou como ondas luminosas projetadas de espectrógrafos antipáticos.
Mas, muitos de nós, que estudam planetas e asteroides, podem acariciar blocos de nossos amados corpos celestes e induzi-los a revelar seus mais íntimos segredos. Quando eu era aluno de graduação em astronomia, passei muitas noites geladas observando por telescópios aglomerados de estrelas e nebulosas e posso garantir que tocar um fragmento de asteroide é mais gratificante emocionalmente: eles oferecem uma conexão tangível com o que, de outra forma, pareceria distante e abstrato.
Os fragmentos de asteroides que mais me fascinam são os condritos. Esses meteoritos, que compõem mais de 80% dos que se precipitam do espaço, derivam seu nome dos côndrulos que praticamente todos contêm minúsculas esferas de material fundido, muitas vezes menores do que um grão de arroz. (...) Quando examinamos finas fatias de condritos sob um microscópio, ficamos sensibilizados da mesma maneira como quando contemplamos pinturas de Wassily Kandinsky e outros artistas abstratos.
(Alan E. Rubin *, Segredos dos meteoritos primitivos.
Scientific American Brasil. março 2013, p. 49.)

* Alan E. Rubin é geofísico e leciona na Universidade da Califórnia.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Hora Absurda

Hora Absurda
Francine Van Hove
O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...
Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...
Abre todas as portas e que o vento varra a ideia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...
Minha alma é uma caverna enchida pela maré cheia,
E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões...
Chove ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim... Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...
Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto...
A chuva miúda é vazia... A Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer cousa como leitos para as naus!... Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...
Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...
Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...
Puseram infólios úteis entre as pedras das barricadas...
E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...
Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
Do Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...
O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono
da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudades de si ante aquele lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...
A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...
E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros...
E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...
Por que me aflijo e me enfermo?... Deitam-se nuas ao luar
Todas as ninfas... Vejo o sol e já tinham partido...
O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar,
E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...
Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora...
As próprias sombras estão mais tristes... Ainda
Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...
Todos os casos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um porto sem navios...
Ergueram-se a um tempo todos os remos... Pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar... Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...
Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!
Todas as princesas sentiram o seio oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...
Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...
Por que não há de ser o Norte o Sul?... O que está descoberto?...
E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te
E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho...
Há cousas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua ideia sabe à lembrança de um sabor de medonho...
Para que não ter por ti desprezo? Por que não perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque -
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...
Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...
Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...
É preciso destruir o propósito de todas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...
Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã - como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...
Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...
Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia batismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema - "Vitória"!
O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei...
Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...
E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!"

Fernando Pessoa (1888-1935)

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Comemorações

Comemorações em 2014
Cem Anos:
  1. Orlando Villas Bôas (12/01)

  2. Octávio Paz (03/03)

  3. Margarite Duras (04/04)

  4. Dorival Caymmi (30/04)

  5. Irmã Dulce (26/05)

  6. Aracy de Almeida (19/08)

  7. Lupicínio Rodrigues (16/09)

  8. Dylan Thomas (27/10)

29/07 – Centenário do início da 1ª Guerra Mundial

19/08 – 2000 anos da morte do 1º Imperador Romano - Otávio Augusto

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Dia de Reis

James Joseph Jacques Tissot
No dia 06 de janeiro comemora-se o dia de Reis, que na tradição cristã foi o dia em que os três reis magos levaram presentes a Jesus Cristo. Cada um dos reis magos saiu de sua localidade de origem, ao contrário do que pensamos - que viajaram juntos.
Baltazar saiu da África, levando para o menino mirra, um presente ofertado aos profetas. A mirra é um arbusto originário desse país, onde é extraída uma resina para preparação de medicamentos.
O presente do rei Gaspar, que partiu da Índia, foi o incenso, como alusão à sua divindade. Os incensos são queimados há milhões de anos para aromatizar os ambientes, espantando insetos e energias negativas, além de representar a fé, a espiritualidade.
Melchior ou Belchior partiu da Europa, levando ouro ao Messias, rei dos reis. O ouro simbolizava a nobreza e era oferecido apenas aos deuses.
Em homenagem aos reis magos, os católicos realizam a folia de reis, que se inicia em 24 de dezembro, véspera do nascimento de Jesus, indo até o dia 06 de janeiro, dia em que encontraram o menino.
A folia de reis é de origem portuguesa e foi trazida para o Brasil por esses povos na época da colonização.
Durante os festejos, os grupos saem caminhando pelas ruas das cidades, levando as bênçãos do menino para as pessoas que os recebem. É tradição que as famílias ofereçam comidas aos integrantes do grupo, para que possam levar as bênçãos por todo o trajeto.
Os integrantes do grupo da folia de reis são: mestre, contramestre, donos de conhecimentos sobre a festa, músicos e tocadores, além dos três reis magos e do palhaço, que dá o ar de animação à festa, fazendo a proteção do menino Jesus contra os soldados de Herodes, que queriam matá-lo. Além desses personagens, os foliões dão o toque especial, seguindo o cortejo.
Uma tradição bem diferente da nossa acontece na Espanha, onde as crianças deixam sapatos nas janelas, cheios de capim ou ervas, a fim de alimentar os camelos dos Reis Magos. Contam as lendas que em troca, os reis magos deixam doces e guloseimas para as crianças.
Em alguns países fazem a comemoração repartindo o Bolo Rei, que tem uma fava no meio da massa. A pessoa que for contemplada com a fava deve oferecer o bolo no ano seguinte.
Na Itália a comemoração recebe o nome de Befana, uma bruxa boa que oferece presentes às crianças. No país não existe a tradição de se presentear no dia 25 de dezembro, mas no dia 06 de janeiro, dia de reis.
O dia de reis é tão importante na Europa que se tornou feriado em todo o continente.
Fonte: Brasil Escola
Por Jussara de Barros

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

História

Henry Vitor
A história é um mestre implacável. Ela não tem presente, apenas o passado se precipitando para o futuro. Tentar se segurar é ser varrido de lado.
John F. Kennedy

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Como a feiura e a beleza interferem em uma decisão judicial

Melany Sarafis
Umberto Eco escreveu A historia da feiura, obra que trata da relação entre o feio e o mundo das artes, como o feio é visto atualmente e se ele só existe devido ao belo. Vinicius de Moraes, mais direto ainda que diplomaticamente, disse com clareza no poema “Receita de Mulher”: “as muito feias que me perdoem, mas beleza é fundamental”.
Frise-se, contudo, que o conceito de feio ou bonito pode variar conforme o local ou a cultura de um povo. Sem dúvida, não há uniformidade. Por exemplo, um índio de um grupo Botucudo (tronco macro-jê), etnia que se localizava no sul da Bahia, ao usar no seu lábio inferior um botoque, ou seja, um disco branco feito de madeira que pode chegar a 12 cm, deveria despertar a admiração do sexo oposto. Tal adorno, porém, não seria um atrativo se exibido hoje para uma jovem estudante de Direito.
Mas, na análise que aqui se faz é preciso partir de um padrão mínimo consensual, sob a ótica de beleza de nosso olhar ocidental. Assim será feito.
A premissa, que dispensa prova por ser fato notório, é a de que ter um belo rosto ajuda nos tortuosos caminhos da vida. Desperta interesse, boa vontade. Mas, será que ter sido beneficiado pela natureza com uma bela face pode auxiliar na solução dos conflitos jurídicos? Obviamente, este aspecto não deve ser levado em conta na solução de um litígio, seria revoltante. Mas, esta proibição ética é sempre obedecida? Ou será que às vezes é desobedecida prestigiando-se o belo, ainda que inconscientemente.
Comecemos pelo mundo animal. A Constituição protege a fauna no artigo 225, parágrafo 2º, inciso II. A Lei dos Crimes Ambientais (9.605/98) ampara, inclusive, os animais domésticos, como se vê do seu artigo 32. Vejamos se a regra constitucional e legal é obedecida indistintamente.
Com forte componente na beleza que ostentam, 178 cães da raça Beagle foram resgatados, no dia 18 de outubro de 2013, em ação desenvolvida por militantes de uma ONG junto ao Instituto Royal, na cidade de São Roque (SP), porque seriam submetidos a experiências científicas destinadas à descoberta de remédios para doenças de seres humanos, as quais certamente lhes tiraria a vida.
Não por seus dotes de beleza, mas sim por serem inteligentes, os chipanzés vêm sendo objeto de ações judiciais que pretendem ver-lhes reconhecida a condição de sujeitos de direitos, inclusive com proteção através de Habeas Corpus (v.g., TJ-RJ, 2ª Câmara Criminal, HC 0002637-70.2010.8.19.0000). Papagaios, tartarugas, pássaros, pequenos e bonitos, animais de estimação, são objeto de ações judiciais que visam protegê-los da ação de órgãos ambientais e mantê-los com seus donos. Neste sentido já decidiu o Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
Mas, nem todas as espécies da criação são lindas, queridas e inteligentes como as dos exemplos citados. O morcego, por exemplo, além de não ser bonito, não age às claras, ao contrário, só sai à noite. Além disto, é cego e orienta-se por uma espécie de radar o que gera medo nas pessoas. Não se sabe ao certo se estes são os motivos, mas o certo é que não se tem conhecimento de nenhuma ação civil pública para protegê-los.
As minhocas são outro exemplo. Importantes na renovação da terra, iscas atraentes na pesca de água doce, não foram prestigiadas em decisão do Superior Tribunal de Justiça no ano 2000 quando se decidiu que “Apanhar quatro minhocuçus não tem relevância jurídica. Incide aqui o princípio da insignificância porque a conduta dos acusados não tem poder lesivo suficiente para atingir o bem tutelado”. (3ª Seção, relator Fernando Gonçalves).
Os insetos também não gozam de maior prestígio na área jurídica. Mesmo fazendo parte da cadeia alimentar, colaborando para o equilíbrio ecológico, ajudando na polinização das plantas, produzindo em alguns casos mel ou seda, e até sendo usados em alguns países na alimentação dos seres humanos. É verdade que a Lei 9.605, de 1998, no artigo 29 considera crime matar espécimes da fauna silvestre e o dispositivo alcança os insetos e até as larvas (parágrafo 1°, inciso III). Contudo, não se tem conhecimento de ações penais envolvendo a morte de insetos (v.g., abelhas) e são desconhecidas ações civis públicas para que sejam protegidos (v.g., as lesmas, por alguns consideradas um prato sofisticado). Passemos aos seres humanos, alargando o conceito de beleza para alcançar a boa apresentação pessoal. Roupas adequadas ao local e momento, um bom corte de cabelo, maquiagem adequada nas mulheres, homens com a barba feita. Evidentemente, não é preciso lei para dizer que estes e os outros, os pouco cuidados, merecem igual tratamento nas relações jurídicas. Mas, será esta a rotina no mundo real?
Imaginemos dois candidatos a estágio em um conceituado escritório de advocacia, com filiais nas grandes capitais e no exterior. Um é bem apessoado e está vestido elegantemente, o outro é exatamente o oposto. Quem faz a entrevista certamente será uma pessoa bem cuidada e que, mesmo inconscientemente, tenderá a escolher alguém semelhante. O primeiro levará vantagem? Terá mais facilidade em ser o escolhido? Tudo indica que sim.
Dizem alguns que alguns escritórios de advocacia localizados nos grandes centros contratam jovens e belas advogadas com uma missão principal: levar petições importantes, com pedido de liminar ou antecipação da tutela, direta e pessoalmente aos juízes. Será que esta é uma técnica que influi na concessão de uma liminar? Será?
Um pedido de indenização por danos morais por uma cicatriz no rosto, fruto de agressão e consequentes lesões corporais, será visto da mesma forma, seja quem for a vítima? Em outras palavras, a cicatriz na face da mulher-gorila de um circo do interior é avaliada da mesma forma que a de uma modelo fotográfica? Despertará o mesmo sentimento de revolta? Ou as reações serão diferentes, menor no primeiro exemplo.
Entre o feio e o bonito estamos, na verdade, muitas vezes diante de uma injustiça da natureza. A vida pode ser, ainda que disto não haja a menor garantia, mais fácil a quem detém a beleza. Mas, ela é passageira e por isso não pode ser colocada em um altar. Acaba, como tudo. Nos encontros de turmas de formandos, a partir do 20º ano, os comentários mais comuns são sobre a calvície de um colega, os quilos a mais da loira que sentava na frente ou aquela que se tornou irreconhecível após a décima plástica.
Finalmente, há que ser lembrada a beleza interior. Ela demora para ser reconhecida, é verdade. Mas, se for bem administrada crescerá com o tempo. Por isso, sem prejuízo de admirarmos a beleza externa, procurar a beleza interior das pessoas e evitar avaliações em razão da aparência, devem ser metas a serem perseguidas.
E que venha 2014, assegurando a todos, belos ou nem tanto, boas oportunidades nas relações jurídicas e muito sucesso na vida profissional.

Fonte:
Jornal de Todos os Brasis: ( O feio nas decisões judiciais )